Instruções Iniciáticas

 

 Graal Branco, Graal Negro

 

Antonio de Macedo


Parsifal. J.A.Knaap *

 

Há pouco mais de meia dúzia de anos tive oportunidade de assistir a uma manifestação artística ocorrida em Lisboa que envolveu os mais heterodoxos meios e se espalhou por cerca de trinta locais diferentes, entre eles várias casas particulares que amavelmente se ofereceram e colaboraram, disponibilizando uma ou duas dependências para determinadas «instalações» e performances. Foi uma iniciativa de gente jovem e muito entusiasta, cheia de ideias e de imaginação, e os «objectos expostos» como que floresciam numa interminável diversidade, tanto se podia ver um par de manequins sentados num sofá, iluminados e vestidos (ou despidos) de certa maneira, e em intencional atitude, como presenciar pequenas encenações com música, luzes e som, como abrir a porta da despensa e deparar com uma colorida e desconcertante surpresa, como ainda tudo quanto a inventiva da arte pós-modernista nos permita fantasiar.

Um casal de jovens, meu amigo, que fazia parte do grupo criativo, insistiu em que no final duma das apresentações eu participasse num pequeno colóquio com alguns elementos do grupo, que, conhecendo-me na qualidade de realizador de filmes, estavam curiosos por ouvir a minha opinião. A conversa resultou assaz instrutiva, devo dizê-lo, talvez mais para mim do que para eles. Tornou-se-me muito claro desde o início que a preocupação daqueles rapazes e raparigas não era meramente lúdica, tinham uma consciência muito aguda da fecundidade e da versatilidade do mundo em que viviam, e desejavam naturalmente não apenas reproduzi-lo ou criticá-lo, mas sobretudo participar da criação desse mundo, em geral, e se possível agir sobre ela.

Foi um diálogo muito animado, primaveril e cativante, e em dado momento alguém do grupo se interrogou para que serviria, afinal, aquilo que estavam a fazer, e o que lucraria o mundo com isso. A discussão animou-se mais ainda, parecia um debate, contei algumas histórias da minha experiência pessoal de cineasta, que vinham ao caso, e a interrogação deslocou-se um pouco ao longo do seu eixo de interesse, digamos: orientou-se no sentido de reinquirir até que ponto deve ou não o artista esforçar-se por corresponder às expectativas do mundo? Propus-lhes que reflectissem, como que em jogo, numa pequena história que me acontecera em meados dos anos 70.

Antes, porém, cabe recordar que em Maio de 1968 o festival de cinema de Cannes, na mesma onda de contestação que por esse mês famoso abalara a França, fora violentamente contestado pelos então jovens realizadores da «nouvelle vague», Truffaut, Chabrol, Godard, Malle, Rohmer…, por entenderem que o festival por de mais se havia enfeudado às majors americanas (como então se apelidavam as grandes produtoras-distribuidoras de Hollywood: a Metro, a Warner, a Paramount…) e por isso atendia menos aos valores artísticos e culturais da «sétima arte» do que aos económicos; o festival foi interrompido e nasceu um festival paralelo, também em Cannes e também em Maio, que a partir do ano seguinte passou a recuperar os filmes de qualidade que a «selecção oficial» de Cannes rejeitava: a «Quinzaine des Réalisateurs». O «délégué-général» da «Quinzaine», Pierre-Henri Deleau, que se manteve denodada e heroicamente no cargo durante quase trinta anos e que revelou nomes tão emblemáticos como Jim Jarmusch, Sean Penn ou Michael Haneke, veio por diversas vezes a Portugal visionar filmes para a hipótese de os seleccionar para a «Quinzaine» — e diga-se de passagem e honra lhe seja feita, mais de uma boa dúzia de filmes portugueses seleccionou e exibiu ao longo desses trinta anos.

Pois em meados dos anos 70, como comecei por referir, Pierre-Henri Deleau veio a Portugal, uma das tais vezes, para visionamentos, e um dos filmes que viu, no Instituto Português de Cinema, era meu — não digo qual porque a incógnita deve fazer parte do jogo!

Eu estava presente com ele na sala, e no final da projecção Deleau virou-se para mim e disse simplesmente:

— Vous êtes un poète mystique.

E não quis o filme. Mais: nunca seleccionou nenhum filme meu, daí por diante. Bom, e descontando a ironia, isto leva a deduzir que os «poetas místicos» não se enquadram provavelmente nas expectativas do mundo, ou pelo menos do «mundo» da cultura e da crítica que Deleau representava, e aqui voltamos, agora com uma outra óptica, à interrogação inicial: quando o artista cria algo que não existia antes — música, pintura, romance, filme, poesia, escultura… — para que precisa o mundo desse novo objecto?

Há várias respostas para isto e as mais inteligentes já foram dadas — desde Aristóteles; e não merece a pena cair na tentação de descobrir enfim a verdadeira — ou apenas a enésima? — chave do mistério da obra de arte. Pois que de mistério, na verdade, se trata! Apesar do mundo se encontrar atulhado de objectos, desde pedras e árvores e vacas a casas e automóveis, desde a alegria duma jovem mãe até um pôr do sol, desde a inveja dum parente até uma montanha, desde a guerra israelo-árabe, as ondas do mar e as emissões de rádio até um assassínio… mesmo assim, ainda há quem sinta necessidade de atravancar o mundo com ainda mais objectos, que vislumbrou na imaginação e não resistiu a concretizar em formas físicas — seja um bailado, uma estátua, ou um soneto. Se pensarmos bem, é uma grande responsabilidade! Senão vejamos.

Apesar da infinita multidão de objectos que povoam o mundo, podemos facilmente classificá-los em dois grandes grupos e colocá-los em uma de duas prateleiras: não preciso de fazer um grande esforço intelectual para perceber que um insulto do meu vizinho, uma guerra ou um atropelamento não podem ficar na mesma prateleira onde coloco um pensamento de gratidão, um riso feliz de criança ou o desabrochar duma rosa num jardim, em plena Primavera. (A Ética, a Psicologia e a Estética por vezes indestrinçam-se!)[1] Mais: a respectiva qualidade vibratória é antagónica, e se for o espírito do homem — e não apenas um fenómeno natural — a provocar certos actos, essa qualidade vibratória tem muita força e tinge intensa e correspondentemente a «psicosfera» e a «noosfera» (as atmosferas globais das emoções e dos pensamentos) que rodeiam o planeta[2]. Se deito uma gota de vinagre num copo de água, é quanto basta para que a água mude de qualidade e se torne, ainda que imperceptivelmente, acidulada; se lhe deito uma gota de mel, a água muda de qualidade, também, mas amacia-se. Como nos adverte uma máxima da Unity School of Christianity: «Tudo o que fazemos vai tecendo os efeitos futuros no lado invisível da vida».

Ao nos encontrarmos envolvidos nessa atmosfera psiconoética para cujo contínuo incremento contribuímos, não podemos deixar de receber dela, reciprocamente, a respectiva impregnação com as nossas antenas psíquicas e mentais. Por isso já dizia o sábio árabe: «Senhor, fazei que as minhas palavras sejam de mel, porque sei que terei de engoli-las de volta». Depende de cada um de nós emitir vinagre ou mel. Basta um simples pensamento de ódio ou um simples gesto de carinhosa ajuda a alguém que precisa. Infelizmente, o mundo materializado e materializante de hoje ignora o terrível alcance da invisível e formidável batalha sem tréguas que se trava nesse plano suprafísico:

 

A batalha entre as forças do bem e as forças do mal é travada com uma intensidade que ninguém pode entender — a menos que esteja directamente envolvido nela. Os Irmãos Maiores da Ordem Rosacruz e doutras Ordens similares que, podemos dizê-lo, na sua totalidade representam o Santo Graal, vivem e subsistem pelo amor e pela essência do serviço inegoísta que no mundo praticam aqueles que buscam viver uma vida espiritualmente norteada, e que os Irmãos Maiores ajuntam e enceleiram como as abelhas ajuntam o mel. Com isto acresce o brilho do Santo Graal, que por sua vez irradia a sua luminosa influência, assim fortalecida, sobre os espiritualmente receptivos, imbuindo-os de maior zelo e maior entusiasmo no bem fazer e no bem combater. Do mesmo modo, as forças do Graal Negro vicejam e prosperam pelo ódio, pela perfídia, pela crueldade e por todas as acções demoníacas da longa lista do mal. Tanto as forças do Graal Branco como as do Graal Negro requerem alimento, umas de bondade, outras de maldade, para prosseguirem a sua existência e ganharem poderes para a sua luta. Se o não obtiverem, debilitam-se e perecem. De onde a batalha sem quartel que não cessam de travar[3].

 

Por outro lado, não é apenas sobre o ser humano que os influxos conjuntos da psicosfera e da noosfera se fazem sentir. Em resposta a uma consulta que lhe foi dirigida por um leitor, sobre a causa das perturbações por que está a passar o mundo e a frequência dos desastres naturais, cada vez mais repetidos e assíduos nos últimos tempos, a cientista rosacruciana Elsa M. Glover, doutorada em Física e professora universitária na Califórnia, escreveu o seguinte:

 

As correntes de energia em torno da Terra são influenciadas pelo estado mental e emocional das populações que a habitam. Quando as pessoas se encontram em estados de grande agitação, quando colectivamente desenvolvem pensamentos ou sentimentos de ódio, ansiedade e medo, geram-se «nuvens» mentais e emocionais que se condensam em «nuvens» etéricas, as quais por sua vez perturbam as correntes de energia que controlam o estado do tempo e a estabilidade do interior do planeta. Daí resultarem tempestades violentas, excesso de chuvas ou secas, tremores de terra, erupções vulcânicas. Em devido tempo, no futuro, as pessoas aprenderão a harmonizar as suas acções com as acções dos seus semelhantes. Então todas essas perturbações hão-de passar, a alegoria do leão que se deita ao lado do carneiro será real, e a Nova Jerusalém — a Cidade da Paz —, será estabelecida na Terra[4].

 

Talvez se entenda agora, mais claramente, o sentido da pergunta que se fazia acima: quando o artista cria algo que não existia antes — música, pintura, romance, filme, poesia, escultura… — para que precisa o mundo desse novo objecto?

A responsabilidade é tremenda, sem dúvida: o artista criou algo que não existia antes — e a inevitável pergunta será: em qual das duas prateleiras o vai colocar? Para qual das duas forças, do Graal Branco ou do Graal Negro, vai contribuir?

O que vemos nos nossos dias não é encorajante, sem dúvida, basta reler o que com muita relutância descrevi, ainda que resumidamente, na segunda parte do capítulo anterior. Um filme, um livro, uma música, uma pintura, catalogável na prateleira negra, não é só nocivo pela maligna influência que exerce no consumidor imediato, mas sobretudo pelas terríveis doses vibracionais com que perpetuamente alimenta a psicosfera e a noosfera que nos rodeiam e que respiramos tão naturalmente como respiramos oxigénio misturado com dióxido de carbono. Trata-se de verdadeira magia negra, que, embora ignorando-se como tal, não é por isso menos poderosa e eficaz. O objecto, uma vez criado, altera as relações de equilíbrio existentes gerando novas tensões; forma um arquétipo que se mantém a vibrar, e, se a força da sua criação encontrar a ressonância apropriada, pode ficar a vibrar eternamente. Não surpreende, pois, que certas criações do espírito, boas ou más (não conto com as indiferentes, supondo que as haja), sobrevivam aos seus criadores com uma vitalidade que estes, em vida, lhes invejariam: D. Quixote continua activo em milhentas revivescências sempre actuais com uma energia e um dinamismo inesgotáveis, muito mais do que um tal Cervantes hoje reduzido a pó e que morreu desgraçado e hidrópico em Madrid, duma vez por todas, em 1616. Qualquer um sabe quem é Pinóquio, Tarzan, Drácula ou o libertino Don Juan; poucos saberão quem foi Carlo Collodi, Edgar Rice Burroughs, Bram Stoker ou Tirso de Molina.

Como observa Max Heindel «os pensamentos são coisas» e, felizmente, «os bons pensamentos são mais poderosos que os maus porque estão em harmonia com o rumo da evolução»[5], o que nos permite ser razoavelmente optimistas quanto ao colorido moral da Idade Vindoura.

Alertemos, entanto, para o seguinte, antes que o supra dito dê azo a descabidas interpretações. Não curamos aqui de primário, ou mal entendido, maniqueísmo, pois não se trata de dois princípios opostos, o princípio do Bem e o princípio do Mal: o mal nunca pode ser um princípio porque não é coetâneo, na Arché, com Deus. Lendo o primeiro capítulo do Génesis observamos que à medida que Deus ia criando os diversos entes, a luz, a terra, o Sol e a Lua, as plantas, os animais, etc., há uma frase que se repete, como um refrão: Et vidit Deus quod esset bonum («E Deus viu que era bom»). No final da Criação, «Deus [ELOHIM] contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom» (Gen 1, 31)[6]. Ou seja: o mal é posterior à Criação. As doutrinas Rosacruzes ensinam-nos que o mal veio ao mundo através dos Espíritos Lucíferos:

 

O primeiro livro do Antigo Testamento inicia-se com o relato de como o ser humano foi desencaminhado e induzido em erro pela falsa luz dos Espíritos Lucíferos[7], a qual deu origem a todo o sofrimento e a todos os males que existem no mundo. O último livro[8] encerra-se com a promessa de que o Sol de Justiça se levantará com a salvação e a cura nas suas asas. E no Novo Testamento descobrimos que o Sol de Justiça, a verdadeira luz[9], virá salvar o mundo, e o primeiro facto que sobre Ele se atesta é que nasceu duma concepção imaculada[10].

 

Esta promessa de redenção, que nos veio pelo Logos Salvador, cumpre-se no Adepto ao longo das quatro Iniciações Maiores, que referiremos na terceira parte deste livro, e que constituem dádivas sem preço que o Cristo ofereceu à humanidade:

 

À excepção de raros, como por exemplo os Discípulos no dia de Pentecostes, estas Verdades sem preço são desconhecidas e negligenciadas por todos — se bem que devessem fazer parte integrante da religião cristã. Tais verdades iniciáticas não podem ser comunicadas ao homem até que prove ser digno de as receber, o que ainda não aconteceu. Limitamo-nos a falar dos ensinamentos de Cristo, mas não os vivemos. Enquanto permanecermos na Lei Antiga, «olho por olho, dente por dente», quer como indivíduos, quer como nações, e enquanto não conseguirmos levar à prática a Regra de Ouro: «Faz aos outros o que querias que te fizessem a ti»[11], não estamos na verdade a viver os elevados preceitos dos ensinamentos de Cristo Jesus[12].

 

Será necessário insistir em que este estado de coisas, dois mil anos após ter vindo a Luz ao mundo, se deve em larga medida à preponderância que o ígneo e marciano corpo das emoções e das paixões retaliativas (corpo de desejos)[13] continua a ter na humanidade, que o alimenta apesar dos sofrimentos que em todos, sem excepção, provoca? E que impregna a mente, tingindo tantas vezes a qualidade dos nossos pensamentos e raciocínios? A propensão vingativa no ser humano, com frequência mascarada sob a nobre imagem ética e jurídica de «justiça», é uma tónica permanente, e bem o ilustra, de forma desataviada e exemplar, uma pequena história que o conhecido realizador polaco Krzysztof Zanussi (n. 1939) contou numa conferência que proferiu em 1993, durante um workshop de escrita de guião cinematográfico inserido no programa europeu «Sources»[14]. Referiu Zanussi que um dos guiões que escreveu, neste caso para o produtor Monahan Golan, se passava em Israel onde se encontrava o protagonista, um americano cuja esposa ficara nos Estados Unidos, tendo ele saído de viagem em plena crise conjugal. Numa dada cena, o americano conversa com um amigo num café em Jerusalém, e decide fazer um telefonema para a América. No guião de Zanussi a decisão de fazer o telefonema à esposa era um ponto crucial, e o protagonista hesita antes de o fazer, mas por fim decide-se, e vai. A conversa não é fácil, em vez de se amenizarem zangam-se ainda mais, gritam e insultam-se ao telefone. Nesse momento explode uma bomba dentro do café e de súbito torna-se irrelevante a querela com a esposa, ele salva-se porque a cabine telefónica se situava num canto afastado, e o amigo morre juntamente com outras pessoas.

Para Zanussi esta situação era fundamental para desengatilhar a pergunta: porquê?, que mais não constituía aliás do que o ponto de partida para uma reflexão filosófica sobre outros tantos porquês: «Por que tomei a decisão de ir fazer o telefonema? E porquê neste preciso instante e não noutra altura? E por que vim a este café? E o meu amigo, que perdeu a vida por minha causa — porquê?, pois se não fosse eu, talvez estivesse noutro sítio? Que lógica se oculta por trás de tudo isto? Haverá um Criador que assim o desejou? Ou foi apenas obra do cego acaso?»

Quando Zanussi apresentou o guião do filme ao coprodutor americano, este recusou-o com uma observação liminar:

— Se o protagonista fosse europeu talvez se perdesse em cogitações dessas, a que ninguém sabe responder, mas um americano só teria um pensamento: correr atrás do bastardo que pôs a bomba, apanhá-lo e matá-lo, pois é assim que as plateias americanas gostam que as coisas se resolvam.

Bom, Zanussi contou esta história como pretexto para reflectir sobre a riqueza interior de certos povos em confronto com a frivolidade de outros, mas no fundo estava a querer mostrar que os filmes da velha Europa têm condições para ser mais profundos e dramáticos que os estereótipos dos filmes americanos. Eu atrevo-me a ir um pouco mais longe — ou, melhor, não tão longe, digamos que me quedarei rudimentarmente por uma comezinha constatação: não creio que se trate aqui de estereótipo ou duma fórmula para engodar plateias, penso que neste tipo de coisas os americanos, talvez mais desinibidos e mais pragmáticos do que os velhos europeus, não perdem tempo com reflexões pseudofilosóficas e dão expressão imediatista àquilo que todo o ser humano sente de modo primário: o herói da fita tem de se «vingar» e o mau tem de ser «castigado», e de preferência sofrendo tanto ou mais do que fez sofrer aos bons.

E vivemos nós há dois mil anos no ocidental mundo impregnado de religião cristã, em que a antiga lei de talião já devia ter cedido o lugar, há muito, à nova lei do perdão e da graça!

 

A Lei deve ceder lugar ao Amor, e as raças e nações separadas devem unir-se numa Fraternidade Universal, tendo Cristo como Irmão Maior.

A Religião Cristã não teve ainda o tempo necessário para realizar esse grande objectivo. Até agora o homem está sob influência do dominante Espírito de Raça[15], e os ideais do Cristianismo ainda são demasiado elevados para ele. O intelecto pode ver nesses ideais algumas belezas e facilmente admite que devemos amar os nossos inimigos, mas as paixões do corpo de desejos permanecem demasiado fortes. Sendo a lei do Espírito de Raça «olho por olho», o sentimento afirma: hei-de ajustar contas. O coração suspira por amor, mas o corpo de desejos anseia por vingança. O intelecto vê, em abstracto, a beleza de amar os nossos inimigos, mas, nos casos concretos, alia-se aos sentimentos vingativos do corpo de desejos com a desculpa de fazer justiça, porque «o organismo social deve ser protegido»[16].

 

E no entanto, por entre os livros do AT onde abundam exemplos de justiça vingativa e taliónica, a antiga sabedoria, despontando aqui e ali, já avisava que se não deve devolver o mal com o mal, alguns vislumbres deste luminoso e profético olhar sobre o crístico porvir se encontram já nos velhos livros, seja-nos exemplo o seguinte: «Não digas: Tratarei o meu vizinho como ele me tratou, pagarei a cada um segundo os seus actos» (Prov 24, 29). Este é um aforismo do livro dos Provérbios do AT, e pertence a uma colecção intitulada «Ditos dos Sábios», profundamente inspirada num velho texto egípcio em trinta capítulos, Ensinamentos de Amenemophis, que remonta ao ano 1000 a. C., ou mesmo antes. O anónimo autor hebraico que o tomou por modelo refere-se aos «trinta ditados» como fonte de inspiração para a sua antologia. Um pouco mais recentes, e atribuíveis ao tempo do rei Salomão com razoável segurança, são os seguintes: «Não digas: Devolverei o mal, mas põe a tua esperança em YHVH, e Ele te salvará» (Prov 20, 22), e: «A desgraça não deixará a casa daquele que retribui com mal o bem que recebeu» (Prov 17, 13). Este último aforismo contém uma séria advertência sobre os perigos duma realidade que a magia conhece sob o nome de «choque de retorno»: o acto que se lança com este ou aquele intuito, mais tarde ou mais cedo volta à origem se não forem tomadas certas precauções:

 

Garseano — … Quando lanças pedras ao ar, Zulayia, que te cai em cima da cabeça?

Zulayia — Pedras.

Garseano — E quando, Zulayia, lanças rosas ao ar, que te cai em cima da cabeça?

Zulayia — Rosas.

Garseano — Como vês, conheces perfeitamente a Regra de Ouro que Jesus relembrou aos homens: Faz aos outros o que desejas que te façam a ti. É uma lei universal: os teus pensamentos, as tuas palavras, as tuas emoções, os teus gestos, uma vez expedidos, regressarão um dia e completarão em ti o destino, bom ou mau, a que foram despachados[17].

 

Bastante tempo depois daqueles venerandos livros, egípcios e hebraicos, terem sido escritos, um grande iluminado que viveu na terra 500 anos antes de Cristo, Buda, luz da Ásia, disse o seguinte: «O ódio nunca se consegue vencer com o ódio; o ódio vence-se com o amor»[18]. Por sua vez o Cristo, luz do Mundo, enunciou o mesmo mais completa e expressivamente: «Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam e rezai pelos que vos maltratam» (Lc 6, 27-28).

Paulo, profundo conhecedor dos mistérios, não foi menos explícito: «Não torneis a ninguém mal por mal; procurai fazer o bem diante dos olhos de todos os homens» (Rm 12, 17); «Não te deixes vencer pelo mal; vence antes o mal com o bem» (Rm 12, 21); e: «Olhai, que ninguém retribua o mal com o mal, mas procurai sempre o bem uns dos outros, e de todos» (1 Tes 5, 15). Paulo sabia que os sentimentos de vingança são o melhor combustível que há para alimentar a chama marciana do Graal Negro[19]. Porque, não o esqueçamos, sendo Paulo um iluminado da tradição iniciática cristã, podia intitular-se um «construtor», ou um maçom místico, ou melhor ainda: um «sábio arquitecto», da mesma linhagem de José e de Jesus, «carpinteiros» — neste caso especiais: ainda que artífices, todos eles, Paulo, José e Jesus já irradiam a lux mystica da crística Ordem de Melquisedec. O carpinteiro, que em grego se diz tektôn — o que constrói em madeira —, é um precursor do architektôn — o que constrói em pedra —, e ambas as artes, no seu conjunto, formam uma «arte sagrada» muito antiga que implica conhecimentos ocultos, transmissíveis de boca a ouvido, graças à misteriosa função protectora, fisica e espiritual, do recinto (edifício profano ou templo) de madeira ou de pedra, ou de ambos, que o artífice, sábia e reverentemente, edifica: «Segundo a graça de Deus que me foi dada, eu, qual sábio arquitecto [gr. sophos architektôn, lat. sapiens architectus], assentei o alicerce, e outro sobreedifica» (1 Cor 3, 10).

Daí o cuidado de Paulo em destrinçar entre a «justiça» e a retribuição vindicativa, ou «vingança», uma vez que estes conceitos, mesmo em tempos neotestamentários, muitas vezes se confundiam como praticamente em todo o AT. Diz Paulo: «Não façais justiça [gr. ekdikountes, lat. vindicantes] por vós mesmos, caríssimos, mas dai antes lugar à ira de Deus, porque está escrito: A Mim compete a justiça [gr. ekdikêsis, lat. vindicta], Eu retribuirei, diz o Senhor» (Rm 12, 19). O verbo grego ekdikazô tanto significa «julgar» e «punir» como «vingar», e o verbo ekdikeô significa «perseguir em justiça».

No versículo seguinte, Paulo explica como se há-de fazer: «Pelo contrário, se o teu inimigo tem fome dá-lhe de comer, se tem sede dá-lhe de beber, pois fazendo assim, amontoarás carvões em brasa sobre a sua cabeça» (Rm 12, 20).

Este passo inspira-se no Livro dos Provérbios, e pertence a uma colecção adicional que é um suplemento aos «Ditos dos Sábios», que já vimos derivarem duma antiga tradição egípcia: «Tem o teu inimigo fome? Dá-lhe de comer. Tem sede? Dá-lhe de beber. Assim amontoarás brasas ardentes sobre a sua cabeça, e YHVH te recompensará» (Prov 25, 21-22). As práticas mágicas egípcias eram universalmente reconhecidas na Antiguidade: «Os livros religiosos do antigo Egipto ensinam-nos que se acreditava ser quase ilimitado o poder do sacerdote ou do homem que conhecesse eximiamente as operações da magia»[20] —, e há quem pense que aquela máxima não é mais do que uma poderosa fórmula mágica, que consiste em deixar que o adversário acumule a nosso respeito as suas más acções: se não retaliarmos, desequilibramos a misteriosa balança do destino, e mais tarde ou mais cedo o choque de retorno fará cair sobre o nosso inimigo tudo quanto ele acumulou contra nós[21]. Não parece ser esta, todavia, a finalidade e a intenção do Iniciado Paulo, recomendar aos seus discípulos uma receita mágica que não estaria de acordo, aliás, com o que temos vindo a descobrir da sua ascensão espiritual. A Igreja católica não andará muito longe da verdade quando interpreta aquela recomendação como uma «metáfora», explicando que assim tornaremos a hostilidade do nosso inimigo intolerável para ele próprio, ou, segundo uma outra perspectiva, que este proceder cristão, cheio de caridade, levará o inimigo pagão a reconsiderar e a arrepender-se. No entanto, apesar da boa vontade desta interpretação, não parece muito provável, suspeito eu, que tal seja o método mais persuasivo para regenerar o pagão ou o incréu. Eu diria antes que Paulo, a quem no Terceiro Céu foram transmitidas «palavras inexprimíveis»[22], pretende criar condições para que o nosso «inimigo» seja queimado pelos «carvões em brasa», ou pelo fogo, da consciência, esse fogo divino que ninguém acende e queima mais que as leis da terra ao pedir severas contas pelo erros cometidos; além disso, Paulo pretende sobretudo que não se alimente o Graal Negro nem com um simples pensamento retaliativo, por isso as suas preocupações e as suas instruções vão todas no sentido de nos abrir a visão e a consciência à graça inspiradora que nos levará sempre, em cada instante, em cada pensamento, em cada gesto, em cada palavra, a agir na verdadeira Luz e no verdadeiro Amor[23], que farão resplandecer o fulgor crescente — assim o desejamos e esperamos — do Graal Branco ou, de plena justeza, do Santo Graal.

 

 

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[1] Com boa vontade, posso condescender uma terceira prateleira, a dos objectos neutros ou indiferentes — se bem que em rigor, em rigor, nada há que seja absoluta e totalmente indiferente.

[2] Os termos «noosfera» e «noogénese» foram inventados e propostos pelo jesuíta Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), filósofo e paleontólogo, no seu livro Le Phénomène humain (1938-1940). O conceito de noosfera de Chardin, também adoptado por Vladimir Vernadsky e Édouard Le Roy, refere-se ao plano do intelecto, ou do pensamento conceptual, e do seu crescimento evolutivo, opondo-se à biosfera (mundo vivo) e à geosfera (mundo inerte). É pois um conceito metafísico que não coincide exactamente com o significado corrente em filosofia oculta, e que designa, tal como utilizo no texto, o plano real de matéria mental que envolve e permeia a Terra, e que se situa uma oitava vibratória «acima» do mundo emocional ou astral da psicosfera.

[3] Max Heindel, Gleanings of a Mystic (ed. cit.), pp. 104-105.

 

[4] In Rays from the Rose Cross, vol. 78, n.º 6, June 1986, p. 244.

 

[5] Max Heindel, Teachings of an Initiate, 7.ª ed. Oceanside 1987, p. 95.

[6] Sobre o plural ELOHIM, v. infra, p. 230.

[7] Os Espíritos Lucíferos, também chamados «serpentes» na Bíblia e em diversas mitologias, são degenerados da onda de vida angélica que imbuíram o serpentino cordão espinhal e o cérebro da humanidade infante (Eva e Adão) com a luz do conhecimento intelectual e a utilização do sexo como livre fruição independente da sagrada missão procriadora. Por isso se diz que o mundo é o reino de Lúcifer. — Para a destrinça entre Lúcifer, Satanás, Diabo, etc., v. infra pp. 310-311.

[8] O último livro do AT é o do profeta Malaquias, e aqui Max Heindel alude ao seguinte passo: «Mas, sobre vós que respeitais o meu nome, levantar-se-á o Sol de Justiça [ou: de Justeza] que traz a salvação nas suas asas [ou: nos seus raios]. Saireis e saltareis, livres como os bezerros ao saírem do estábulo» (Mal 3, 20, ou, segundo a numeração da Vulgata: Mal 4, 2).

[9] Refere-se ao seguinte passo do Evangelho de João: «E era a luz verdadeira, a que ilumina todo o homem vindo ao mundo» (Jo 1, 9).

[10] Max Heindel, Occult Principles of Health and Healing, 8.ª ed. Oceanside, 1984, pp. 55-56.

[11] Cristo formulou a Regra de Ouro da seguinte maneira: «Assim, pois, tudo quanto quiserdes que os homens [gr. anthrôpoi] vos façam, fazei-o também a eles, porque esta é a lei e os profetas» (Mt 7, 12).

[12] Corinne Heline, The Blessed Virgin Mary (ed. cit.), p. 124.

[13] Na terminologia Rosacruciana, o corpo de desejos, ou corpo emocional, é um dos componentes da personalidade: cf. p. 116 (nota 155).

[14] Krzysztof Zanussi, Sources of Inspiration Lecture — 1, Amsterdão, 30 de Maio de 1993.

[15] Espíritos de Raça são arcanjos que compenetram e inspiram os indivíduos e a atmosfera anímica duma tribu, duma nação, dum povo; a Bíblia chama-lhes «príncipes», que combatem entre si e arrastam os respectivos povos nesse combate. Por exemplo, segundo o livro de Daniel do AT, o arcanjo Miguel é o «príncipe» de Israel, pronto a combater os inimigos da nação judaica: «Então ele disse: Sabes por que vim a ti? Preciso de regressar para combater o Príncipe da Pérsia, e, quando o tiver vencido, será a vez do Príncipe de Javan» (Dan 10, 20). O Príncipe da Pérsia é o arcanjo protector desta nação, com quem Miguel terá de combater nos reinos invisíveis, tal como o Príncipe de Javan é o arcanjo da Grécia, que será adversária dos judeus após a queda dos persas.

[16] Max Heindel, The Rosicrucian Cosmo-Conception (ed. cit.), pp. 384-385.

[17] António de Macedo, O Osso de Mafoma, Lisboa 1989, pp. 32-33.

[18] Citado em: Annie Besant, An Autobiography (Londres 1893), trad. port. Gervásio de Figueiredo: Autobiografia, São Paulo s/d, p. 204.

[19] Este ensinamento foi sabiamente preservado pelos continuadores de Paulo, como o demonstra por exemplo a primeira epístola dita de Pedro, no NT, escrita por um cristão anónimo do tempo do imperador Trajano (53-117 d. C.), e bom conhecedor da teologia e da terminologia paulinas: «Enfim, sede todos concordes, compassivos, misericordiosos, humildes, não devolvendo mal por mal nem afronta por afronta: pelo contrário, abençoai, pois para isto fostes chamados, para serdes herdeiros da bênção» — 1 Ped 3, 8-9.

[20] Sir E. A. Wallis Budge, Egyptian Magic (Londres 1899), trad. port. Octávio Mendes Cajado: A Magia Egípcia, São Paulo 1983, p. 10.

 

 

[21] Robert Ambelain, Jésus ou le Mortel Secret das Templiers, Paris 1970, p. 271. — Conforme já fiz notar em notas anteriores (v. supra., p. 74, nota 89, e p. 96, nota 109), apesar da sua inegável erudição e dos seus profundos conhecimentos, as especulações de R. Ambelain carecem, na esmagadora maioria de casos, de fundamento sólido, e escurentam mais do que esclarecem.

[22] V. supra, p. 117.

[23] É este o profundo sentido oculto da recomendação de Paulo: «Orai sem cessar» (1 Tes 5, 17).

 

* PARSIFAL - Picture by JAKnaap, from  Manly P. Hall's book "The Secret Teachings of All Ages", The Philosophical Research Society

- Extraido de "Instruções Iniciáticas" , de Antonio de Macedo. Publicado pela Ed. Hugin, Lisboa, 2000.

 

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