O QUE A BÍBLIA NOS ENSINA


Meu Deus, Por Que Me Abandonaste?

O estudo que vamos realizar agora destina-se a esclarecer um passo bíblico do NT menos claro, na medida em que foi colocado em relação com um texto do AT, os Salmos – a expressão por excelência da oração do povo hebreu. Poder-se-á perguntar se se deve questionar a validade da tradução/interpretação corrente. Na religião, a doutrina, uma vez aceite, torna-se axiomática. Não requer prova. Mas nós, quando encontramos algum conflito com a razão, temos de procurar logo uma luz que nos alumie e ajude a vencer as dificuldades. O facto de um livro ser copiado, recopiado e conservado, é já em si notável. É preciso lembrar que o conjunto dos livros que formam as escrituras – no N.T. com os seus vinte e sete livros – teve uma evolução gradual, cheia de complexidade, que vai desde o fim do segundo século até ao quarto século d.C. Uma boa parte dos textos foram conservados num estado que deixa muito a desejar. Às vezes, os estudiosos apresentam até reconstituições que são muito mais engenhosas que prováveis.

A conhecida versão dos Setenta (Septuaginta ou dos LXX), por exemplo, é, ao mesmo tempo, e também por isso mesmo, um trabalho de interpretação que revela a progressiva helenização das citações bíblicas. A sua comparação com outras fontes pode oferecer a compreensão de alguns passos menos claros e identificar as interpretações de carácter teológico que os tradutores possam ter introduzido nos textos. É bom, por isso, estudar caso a caso e comparar, ao mesmo tempo, os textos paralelos e as técnicas de tradução utilizadas.

De facto, no processo de consolidação da tradição cristã, quando os doutores da Igreja se deparavam com alguma dificuldade ou ambiguidade bíblica, especulavam sobre o seu significado, procurando interpretá-lo. Uma vez resolvido o problema e aceite a solução, era venerada como um dogma. Com o tempo, o dogma adquiria a força de um facto real. Há imensos exemplos. Procurar conhecer melhor a tradução é essencial para compreender a mensagem evangélica em toda a sua plenitude.

 

As Versões do Novo Testamento

 

Nos tempos antigos não havia rigor nas traduções dos livros. As que ainda existem desse período nem sequer permitem reconhecer, em muitos casos, com exactidão, o texto original utilizado. A versão dos LXX foi a primeira a romper com esta indisciplina. O grego tornou-se a língua litúrgica do cristianismo do Ocidente até ao terceiro século d.C.. Clemente de Roma, Hermas, Irineu de Leão, etc., escreviam em grego. A literatura cristã em língua latina só nasceu no segundo século d.C., com Tertuliano, no Norte de África e não em Roma. A versão mais antiga é a Vetus Latina. Seguiu-se-lhe a Vulgata, de S. Jerónimo, no final do quarto século. Esta versão converteu-se, desde a época carolíngia, no texto "oficial" da Igreja latina. Também é importante para o nosso estudo a versão siríaca, denominada Peshitta. O siríaco é o dialecto aramaico mais célebre. Foi durante muito tempo a língua litúrgica e oficial das comunidades cristãs da Mesopotâmia e da Síria. Actualmente é a língua litúrgica de algumas comunidades cristãs do Oriente e é falado em várias aldeias da Síria.

A Peshitta data do quarto ou quinto século d.C. e tem a particularidade de ter sido composta por autores que viviam num ambiente cultural semelhante àquele em que Jesus nasceu e pregou. É já a reelaboração de um texto anterior, a Vetus Syra, mas ainda contém muitos elementos do siríaco antigo e uma qualidade estilística que não foi prejudicada pela influência da versão grega dos LXX. Existem outras versões, que assinalamos, mas sem interesse para o nosso trabalho: a cóptica, a gótica, a arménica, a etiópica, as versões árabes, a eslava, etc. 1 .

 

Os Evangelhos Sinópticos 2

 

O evangelho de Marcos é o mais antigo. Sabemos muito pouco como este livro foi escrito. Foi compilado, com toda a probabilidade, para os gregos de uma comunidade cristã do Oriente, talvez da Síria, na época da guerra entre os romanos e os judeus, c. de 70 d.C. Historicamente, foi um acontecimento de enorme importância porque registou, por escrito e pela primeira vez, a tradição que, sobre Jesus, se transmitia oralmente 3 . Mateus e Lucas usaram este livro para escreverem os seus evangelhos – além de fazerem uso independente de uma segunda fonte.

Mateus e Marcos assinalam o remate da vida de Jesus com o brado de morte "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?". Querem os estudiosos das várias confissões cristãs que estas palavras sejam as do Salmo 21(22), não só pela coincidência das palavras iniciais mas também porque a primeira parte do salmo parece descrever a condição física de Jesus e a sua experiência emocional na altura da crucificação 4,5 . A interpretação deste passo do N.T. sempre foi discutida. É certo que nem Mateus nem Marcos dissimulam a angústia de Jesus perante a morte, mas é difícil aceitar este grito de abandono que levanta dúvidas sobre a imagem de Deus que Jesus pregou durante toda a sua vida. Um Deus que abandona o justo e o desprezado não pode ser o Deus que Jesus anunciou como sendo Aquele que se torna próximo do pobre, do pequeno, do oprimido.

 

A Liturgia da Sexta-Feira Santa

 

Nos tempos áureos da oratória sagrada, nas cerimónias da Sexta-Feira Santa, confiava-se aos melhores oradores uma espécie de oração que era associada a intervenções do coro. Por via de regra, o orador evocava as primeiras palavras do Salmo 21(22), chamado "Salmo da Paixão". A tradição cristã defende a convergência entre e as profecias do A.T. e os acontecimentos da vida de Jesus, apesar de haver exemplos claros de que, em certos casos, essa convergência não resulta unicamente de simples coincidências. Será que a invocação por que começa o Sl 22 tem o mesmo sentido da fórmula tal como aparece em Mateus e Marcos?

Vamos analisar o texto de diversas versões bíblicas de acordo com a orientação anteriormente adoptada. As variantes que nelas encontramos constituem excelente material para um estudo com base na crítica textual e no critério de conformidade. Aplica-se este critério a uma palavra ou frase, atribuída a Jesus, verificando se ela está em conformidade com o ambiente, os usos e, sobretudo, com os ensinamentos e o modo como os viveu. Este método contribui para restituir o texto à sua forma original, depurando-o o mais possível de todos os elementos estranhos ao sentido que os copistas possam ter introduzido.

É claro que este critério não há-de pecar pela rigidez nem pelo automatismo mecanicista. Deve ter em conta, sobretudo, que a transmissão do texto produz fenómenos de "banalização" que levam o copista a facilitar a leitura sempre que encontra uma dificuldade de natureza lexical, gramatical, histórica ou até teológica.

 

O Salmo da Paixão

 

Vamos então analisar o Sl 21(22), numa perspectiva "diacrónica" 6 , como anteriormente.

Nos textos correntes, que seguem principalmente os LXX, escreve-se: em Mc 15, 34, "Eli, Eli, lama sabachthani" 7 e, em Mt 27, 46, "Eloi, Eloi lama sabachthani". Estudemos então o texto hebraico.

A língua hebraica pertence ao grupo das línguas semíticas, juntamente com o aramaico e o fenício. O texto hebreu que usamos é o do manuscrito de Leninegrado B 19 A(L) que é, hoje em dia, o mais antigo do Velho Testamento. Foi o que serviu à Bíblia de Estugarda, a sucessora da famosa Bíblia de Kittel. O códice de Leninegrado é, reconhecidamente, o mais genuíno representante da escola massorética tiberiense de Ben-Asher. Foi esta família de eruditos escribas judeus – e os seus discípulos – que nos legou o texto com a actual vocalização e acentuação. Recorde-se que a escrita hebraica é essencialmente consonântica. O sistema vocálico, que se idealizou mais tarde, é que permite escrever as vogais – por debaixo das consoantes – e os acentos – por cima das mesmas.

Ora, o texto hebreu diz: "Eli, Eli, lama azavtani", que se traduz por "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?". Mateus cita-o parcialmente em aramaico (Eloi, Eloi...) e, sendo romana a maioria dos seus leitores, faz depois a tradução para o grego 8 . Mas nos dois sinópticos escreve-se "sabachtani" e não "azavtani". A que se deve esta mudança do texto?

 

Alterações Deliberadas ou Erros dos Copistas

 

As alterações que ao longo do processo de escrita das cópias dos manuscritos se podem introduzir no texto agrupam-se em dois tipos: acidentais ou deliberadas. Uma variante textual pode ter, por isso, ao mesmo tempo, relação com os dois fenómenos: de corrupção e de alteração. As causas da corrupção são variadas. Podem ter origem na confusão de letras similares da escrita hebraica ou quadrática, na transposição letras ou palavras (metátase), na divisão ou união incorrecta das palavras, e até na confusão de palavras homófonas, como acontece no Sl 49(48),8: em algumas versões traduz-se (bem) "’ah" – irmão; noutras toma-se por "’ak" – certamente, infelizmente 9 . Há semelhança entre o grafema e o fonema, criando confusão ao ouvinte relativamente à identificação da palavra expressa oralmente.

Importa, por isso, não só identificar a maneira como se formou a palavra "sabachtani" como definir-lhe o significado e compará-la com as formas vulgares usadas nos primeiros escritos bíblicos.

Deve-se dizer que, na verdade, nunca se provou que este vocábulo resultasse de uma evolução da raiz "azav", de azavtani. É provável que as modificações fonéticas, que podem estar na origem daquela modificação, fossem impostas por circunstâncias aberrantes, devidas, em parte, ao desconhecimento da língua hebraica pelos falantes de outros idiomas, designadamente o grego, durante a recolha das tradições orais, dando origem à lamentável confusão entre variantes da pronúncia popular da palavra, a grafia e o sentido que se lhe atribuía. O actual jogo infantil do telefone, em que a mesma frase é sussurrada ao ouvido de um círculo de pessoas – e que, subsequentemente, modifica a mensagem – proporciona um bom exemplo do desvio semântico provocado pela degradação da repetição oral do texto.

Ao observar, sob o ponto de vista fonético, um conjunto de vocábulos que podem ter evoluído para "sabachtani", omitimos voluntariamente os de valor mais discutível e assinalamos apenas dois: Shabah, louvar, elogiar, glorificar, mas também acalmar, tranquilizar; e Shabat, cessar, descansar, desistir. O primeiro, shabah, é usado biblicamente num contexto de adoração voltado para o poder, a glória e a santidade de Deus (e apenas se utiliza nos textos bíblicos em duas formas verbais: a activa e a reflexiva 10 ). Vamos encontrá-lo, por exemplo, em: Sl 117(116),1 (..."louvem" todos os Senhor) e Sl 147(146-147),12 (... "louva" o Senhor).

Na segunda pessoa do singular da forma verbal qal, algo semelhante ao nosso pretérito perfeito, diremos "shabahta".

Como na língua hebraica o complemento directo do verbo se coloca como um sufixo, teremos "shabahta+ni", em que o "ni" significa "me", "a mim"; mas, nesta forma verbal, dever-se-ia escrever "shibachtahni".

Voltemo-nos para os antigos manuscritos. Encontramos: sabak-thanei, zabakthanei, zapthani, zaphani, izpthani, etc., e também sibakthanei 11 . Esta diversidade ortográfica da palavra revela bem o carácter conjectural das sucessivas emendas.

Se admitirmos a passagem do grupo -shi- para -si- e -sa- poderemos aceitar a tradução: "Meu Deus, Meu Deus, por que me glorificaste?"

O segundo vocábulo, Shabat, é um verbo que, usado intransitivamente, encerra a ideia de "chegar ao fim", "deixar de", "cessar", como vemos no Gén 8,22 e em Jó 32,1. Parece-nos melhor guardar a totalidade do seu estudo para outro local e, por isso, resta-nos, agora, citar a tradução do siríaco "lemana shabahtani", proposta por G. Lamsa: "era este o meu fim" ou "era este o meu destino" 12 .

Isto é o que se pode deduzir dos escassos elementos ao nosso dispor.

 

Conclusão

 

Já podemos concluir.

Pode-se esperar que o texto de um escrito antigo tenha sofrido danos nas mãos dos copistas, especialmente por causa da abundância de termos raros, e até únicos, construções gramaticais pouco vulgares, subtilezas de expressão e de ideias. E a percalços de tradução todos os tradutores e copistas estão sujeitos. O que não se pode aceitar é a obstinação no erro de que os nossos estudiosos dão lamentável exemplo.

O testemunho dos LXX nem sempre é útil, uma vez que os tradutores gregos muitas vezes parafrasearam e até deliberadamente corrigiram e abreviaram o texto hebraico, a fim de tornar mais acessível um passo considerado obscuro ou para suavizar piamente uma suposta audácia teológica. A Vulgata tem uma grande beleza literária e, embora tenha reagido contra os LXX, não é, em geral, nestes casos, um testemunho de grande importância, por ter sido contaminada pela Vetus Latina e também sujeita a um gradual processo de corrupção (que motivou as revisões de Cassiodoro e Alcuíno). Por isso, é bom recorrer às versões antigas, menos às que dependem dos LXX, provavelmente a única que os primeiros cristãos conheceram, para ajudar na restauração e explicação do sentido original da mensagem evangélica.

As palavras "Meu Pai, Meu Pai, por que me abandonaste?", geralmente consideradas como citação do Sl 22(21), apresentadas como as últimas palavras de Jesus, parecem mais uma interpretação pouco agradável do último grito de Jesus por parte dos presentes, tal como a explicação de que chamava por Elias.

A leitura "Meu Deus, Meu Deus, por que me glorificaste?" está mais conforme o espírito dos ensinamentos de Jesus e em harmonia com o "Conceito Rosacruz do Cosmo". Igualmente aceitável parece a tradução do siríaco "era este o meu destino", embora não colha simpatia unânime dos estudiosos.

Estabelece-se assim doutrina que, embora não aspire à indiscutibilidade, tem, ao menos, a vantagem de afirmar-se de harmonia com os ensinamentos de Jesus e de Max Heindel, quando refere, no Conceito Rosacruz do Cosmo, que o Mestre teve conhecimento, durante toda a sua vida, da missão que lhe estava confiada 13 .

 

Agradecimento

 

O autor agradece à Drª Miriam Svirsky o paciente estudo das citações do A.T.. O seu profundo conhecimento da língua e da literatura bíblica hebraica contribuiu substancialmente para o enriquecimento deste estudozinho.

 

F. C.

 

Notas

 

1 Julio Trebolle Barrera, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã; Vozes, Petrópolis, 1996, p. 396-436.
2 De Mateus, Marcos e Lucas.
3 Günther Bornkamm; Bíblia – Novo Testamento (Introdução aos seus Escritos no Quadro da História do Cristianismo Primitivo); Edições Paulinas, S. Paulo, 1981, p. 53-54.
4 Michel Cougues, Os Salmos e Jesus; Difusora Bíblica, 1985, p. 29 e seg.
5 Prof, F. Davidson, O Novo Comentário da Bíblia; Ed. Vida Nova, 1999, p. 517-518.
6 Dia-cronos: estudo do texto "ao longo do tempo".
7 A Bíblia Sagrada, Trad. de João Ferreira de Almeida, Soc. Bíblicas Reunidas, Lxª, 1968.
8 Prof. F. Davidson; ob. cit.; p. 1023.
9 A Bíblia Sagrada; Trad. João Ferreira de Almeida, Sociedades Bíblicas Unidas, Lxª, 1968, Sl 49,7: "Nenhum deles, de modo algum, pode remir a seu irmão"; Bíblia Sagrada, Sociedade Bíblica de Portugal, 1993, Sl 49(48),8: "Infelizmente, ninguém pode salvar-se a si próprio".
10 Como noutras línguas semíticas, o hebraico não possui conjugações no sentido que habitualmente damos à palavra "conjugação". O verbo tem várias formas. É da forma simples, "qal", que se formam as outras. Cf. Manuel Augusto Rodrigues, Gramática Elementar de Hebraico, Coimbra, 1967, p. 57-58.
11 Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament; 2ª ed., Deustsch Bibelgesellschaft, Stuttgart, 1994; p. 99-100.
12 Holy Bible, from the Aramaic of the Peshitta; Trad. George Lamsa; Harper San Francisco, Nova Iorque, 1968; p. 986
13 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, F.R.P., Lxª 1998; p. 301.

- Fonte: Revista "Rosacruz", Fraternidade Rosacruz de Portugal

 


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