Na Terra dos Mortos que Vivem

Prentiss Tucker 

 

CAPÍTULO VI

 

AS IDÉIAS DE UM SOLDADO SOBRE RELIGIÃO

 

O tom de voz da pessoa que falou por último, atraiu a atenção de nosso amigo Jimmie e ele ouviu interessado.

- O que... o que... o que quer dizer? - gaguejou o horrorizado pastor.

- Exatamente isto. Que se dane o fogo eterno. Não é lógico, não está nas escrituras, não é cristão, e não está na Bíblia. Além disso, um Deus que age como você diz que Ele age, seria um demônio e não um Deus.

Era um soldado alto e magro que falava. O intervalo de silêncio causado pela estupefação do horrorizado pastor, que não podia acreditar no que tinha ouvido e estava mudo de surpresa, deu a Jimmie a oportunidade de olhar rapidamente o grupo antes do soldado continuar.

- Quem é Deus, então?

- Quem é Deus! Quem é Deus! Oh, meu querido irmão! Será que você pode ser tão ignorante para me perguntar isso?

- Tenho certeza que sim! Você parece saber muito sobre Ele, pelo menos você dá essa impressão. Agora diga-me somente quem é Ele e o que faz?

- Quem é Ele? Oh, não, não! Com uma vara de ferro ele rege o mundo e poderia quebrá-lo em pedaços como um vaso de barro. Ele fez você e seu único filho morreu por você para salvá-lo da condenação eterna, e você ainda pergunta, quem é Ele?

- Agora escuta-me, pastor. Eu não quero ser indelicado e não quero ser irreverente, mas passei por aquele inferno lá e vi meu companheiro, o melhor rapaz que jamais conheci, e o homem mais corajoso - aqui ele olhou ao redor do pequeno círculo como se quisesse desafiar alguém a negar o fato - o homem mais corajoso que já viveu. Vi-o ser atingido por uma granada que lhe arrancou as duas pernas, e ele morreu lá mesmo, nos meus braços, sem ajuda possível. Vi-o morrer e quando isto terminar, se eu estiver vivo, devo relatar à sua mulher e a sua mãe como ele morreu. E você diz que Deus fez o mundo, rege o mundo e Ele permite coisas como esta guerra? Por que Ele não evitou isto? Se Ele é tão grande e santo como você diz, por que Ele não deteve os homens que começaram esta coisa?

- Meu pobre irmão ignorante. Deus não permitiu esta guerra. Foi o diabo, o Grande adversário, que trouxe isto.

- Então Deus não rege o mundo! Ele faz-nos, mas fez um trabalho tão ruim que teve que enviar Seu único Filho para morrer e nos salvar, e mesmo assim Ele só salva uns poucos, você próprio disse que a grande maioria vai para o inferno, ouvi você dizer isto quando falava do caminho fácil que leva à destruição.

- Oh, mas meu irmão, isto tudo está na Bíblia. Você está negando, a Palavra de Deus.

- Eu não sei o que estou negando, mas não acredito que a Bíblia diga isto. Acredito que você lê a Bíblia e procura tirar dela aquilo que você quer tirar e não aquilo que a Bíblia quer dar. Agora, escuta-me por um momento e diga-me se estou cometendo um erro. Deus é todo poderoso. Não é?

- Sim, sim, é. Sem dúvida e...

- Então espere um momento, pastor, se você me permitir, é minha vez agora e estou tentando chegar à verdade, se puder. Agora, começando novamente, Deus é todo poderoso, isto quer dizer que Ele é capaz de fazer tudo?

- Sim, sem dúvida.

- Ouvi um ministro dizer certa vez, que Ele é onipotente?

- Sim.

- Isto quer dizer que Ele é todo-poderoso mas quer dizer muito mais, também.

- Realmente! Você é um advogado hábil! - foi a exclamação de admiração de outro soldado do grupo.

- Bem, estudei muito advocacia e também pratiquei um pouco, mas nunca me dediquei a este tipo de debate.

- Agora meu irmão, deixe-me dar-lhe alguns tratados para ler.

- Não, pastor, não quero ler nenhum tratado. Eles todos fogem das grandes perguntas. Você começou este assunto e espero que continue a agir como um homem e não se perturbe porque não estou tentando prejudicar nenhuma religião. Estou real e honestamente procurando luz, mas quero luz verdadeira... luz do sol... não o seu tipo de luz de velas de sebo. Quero chegar à verdade. Estive no inferno, lá, atrás das trincheiras e caminhei, face a face com a morte. O mesmo aconteceu a todos estes rapazes aqui, e estamos procurando a verdade... fatos... a verdade verdadeira, não qualquer imitação. Estou aqui agora para dizer-lhe pastor, que minha felicidade eterna vale tanto para mim quanto a sua vale para você, e não estou tentando chocá-lo, quero a verdade, o mesmo querem todos estes rapazes.

- Mas, irmão, eu já lhe disse. Aceite Cristo, vista a armadura do Evangelho e poderá resistir a todas as astúcias do inimigo.

- Lá vem você, Pastor, fugindo do assunto. As perguntas são: Quem é Deus, por que Ele nos fez, por que Ele permitiu esta guerra?

- Oh, mas você está errado. Ele não permitiu. É tudo contra Sua vontade...

- Contra Sua vontade e Ele é onipotente? Não pastor, tente de novo.

- Mas eu lhe digo, irmão, venha humildemente ao trono da graça. Aceite Cristo com a mão direita da amizade e mesmo agora poderá ser salvo.

O soldado alto olhou para o pastor por um momento, deu um suspiro e foi-se embora.

- Sempre termina assim - ele disse para outros do grupo - jamais conheci um pastor que pudesse sustentar até o fim uma verdadeira discussão com alguém que quisesse conhecer a verdade, se é que ela existe. Eles sempre se esquivam e usam rodeios. Até logo, pastor - ele disse amavelmente ao retirar-se do lugar.

Jimmie rapidamente dobrou sua carta, colocou-a em seu bolso e seguiu-o. Esta talvez fosse uma oportunidade para começar o grande trabalho. O Irmão Maior havia dito que a tarefa não lhe seria imposta, mas ser-lhe-iam dadas oportunidades para trabalhar se assim o desejasse. Talvez essa fosse uma. Ele alcançou o homem que fez continência tranqüilamente, enquanto procurava acertar seus passos ao dele.

- Ouvi parte de sua conversa com o pastor - disse Jimmie - e quero perguntar-lhe se permite, se era a expressão de seu real desejo quando disse que queria conhecer a verdade.

- Esteja seguro, meu tenente, que desejava, mas nunca consigo que um ministro responda as perguntas que faço e, mesmo assim, eu as acho razoáveis.

- Acredito que posso responder suas perguntas, se você me deixar tomar o lugar do pastor e, além disso, creio que nós vamos gostar da discussão.

- Está bem senhor.

O tom foi de resignação. Jimmie sentiu a situação. O soldado alto havia dito a verdade ao dizer que queria luz, mas não estava apreciando a idéia de que um jovem segundo-tenente pudesse ocupar os momentos livres de um soldado fatigado com uma discussão inútil sobre um assunto do qual devia ser totalmente ignorante. Ele (o soldado) tinha freqüentemente ido a procura de luz com aqueles chamados divulgadores da luz e, em troca, só havia recebido... escuridão. Para este segundo-tenente presumir ter o que nenhum dos ministros tinha, era como um aluno da escola primária oferecer-se a ensinar a um major general os rudimentos da estratégia. Contudo, o soldado alto possuía boa índole e decidiu suportar esse assunto por alguns minutos para ver o que o tenente teria a dizer.

Jimmie disse depois de um curto silêncio constrangido:

- Sabe, senti pena daquele pobre pastor, você dirigiu-lhe algumas perguntas difíceis.

O soldado alto reprimiu o riso:

- Elas o deixaram bem atrapalhado, não?

- Sim, deixaram. No entanto, as respostas são muito simples.

- Gostaria que você me desse essas respostas.

- Bem, faça suas perguntas.

- Existe uma vida depois da morte?

- Sim.

- Como você sabe?

- Porque estive lá e voltei.

- Caramba! Você ganhou esta, talvez. Mas, aqui vai outra: Como sabe que esteve lá e voltou?

- Já esperava essa pergunta. Sei que estive lá e voltei porque conheci e falei lá com pessoas que conheci na vida terrena, e também porque conheci e falei lá com um homem que não conhecia antes, mas que não havia abandonado ainda o seu corpo físico e, ao seguir suas instruções, encontrei-o mais tarde em seu corpo físico. Porém, reconheço plenamente que o que é prova para mim, não o é para você, pois você só tem minha palavra e mesmo que me conhecesse bem e não duvidasse do que eu disse, mesmo assim existe uma grande margem de erro de julgamento, de modo que, no sentido exato da palavra, não pode haver “prova” para você a não ser através de sua própria experiência. Mas pode haver uma prova secundária, uma evidência circunstancial, como você pode dizer, que seria uma “prova” dez vezes mais convincente do que qualquer coisa que eu possa afirmar, ainda que não duvidasse de minha palavra.

- O que você quer dizer exatamente?

- Quero dizer isto: desde sua infância, disseram-lhe que há um Deus, que Ele é sabedoria, conhecimento, amor, etc. Você vê certos fatos no mundo ao seu redor que acha difícil conciliar com tal idéia de Deus. Você vê injustiça, miséria, guerra, dor, tristeza, separações; constatamos que alguns têm sorte a vida inteira e alguns são infelizes sem que tenham cometido faltas. Você vê todas essas coisas e, naturalmente, quer saber por que elas existem em um mundo que foi criado por um Ser cujo nome é amor. Uma vez que estas coisas existem, e uma vez que não são evidências de amor, Você argumenta que Deus não existe de maneira nenhuma, ou que lhe faltam alguns dos atributos que lhe são atribuídos ou que existe um Poder Rival de obscuridade, de força parecida, senão igual à força poderosa de Deus. Não é assim?

- É exatamente esse o caso, tenente.

- Você pergunta as razões por que estas coisas são permitidas no mundo, e eles respondem com subterfúgios e chavões, que demonstram que os homens que devem conhecer melhor as coisas de Deus, são realmente tão ignorantes quanto você, mas nem sempre suficientemente honestos para admitir isso. Eles acreditam em certas coisas que vos parecem sem evidência suficiente e querem que acredite exatamente no que eles acreditam, mas são totalmente incapazes de responder qualquer de suas perguntas, e até se ressentem quando as faz. Contudo, todo problema torna-se como a luz do dia quando percebemos que todos nós somos espíritos em evolução, partes de Deus exatamente como diz a Bíblia, quando sentimos que estamos crescendo em experiência, conhecimento e poder através das muitas vidas, uma após outra, que vivemos na terra. Estamos sujeitos a duas grandes leis: primeiro, a Lei do Renascimento, que nos traz várias vezes de volta ao plano físico; segundo, a Lei de Conseqüência que decreta que colheremos exatamente o que semeamos repetindo o que nos diz a Bíblia. Entre nossas vidas terrenas, estamos em outro estado de consciência, no qual a experiência da vida passada é incorporada ao nosso espírito como consciência. O pecado é o resultado da ignorância das leis de Deus, e o sofrimento resultante, com o tempo, ensina-nos como obedecer essas leis, da mesma maneira que uma criança que tenha queimado seu dedo aprende a evitar uma lareira acesa. Porém, alguns são afortunados porque progrediram mais que outros no caminho da evolução, aprenderam mais lições e estão em condições de viver mais de acordo com as leis de Deus. Outros são infelizes porque em vidas passadas agiram mal e contraíram dívidas de destino, ou melhor, não conseguiram progredir tanto no caminho da evolução porque não pagaram todos os seus débitos, pois ninguém, em todo o universo de Deus, vem ao mundo para sofrer por algo que não mereceu devido às suas ações no passado. No entanto, é conveniente salientar que o passado abarca centenas de vidas. No grande esquema da evolução humana existem grandes momentos de mudança, nos quais uma ajuda extra é fornecida. Esta guerra é um desses momentos e permitiram que isso acontecesse porque a raça estava ficando atolada no materialismo e era preciso um grande choque para que o pensamento da humanidade se voltasse para a única coisa real no mundo: o estudo das leis de Deus e a determinação de obedecê-las. As leis de Deus nunca foram tão bem resumidas como o foram por Cristo, quando Ele disse: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos.” Estou sendo claro nestas explicações?

- Sim..., mas se eu vivi antes, por que não me lembro?

- Bem, as causas que operam para evitar que nos lembremos de nossas vidas passadas são complexas, e levaria muito tempo para explicá-las. Mas o fato é que estamos diante de uma providência misericordiosa da natureza, pois se nós lembrássemos de todas as nossas vidas passadas, não poderíamos avançar no caminho, pois os antigos amores e ódios do passado levar-nos-iam à ações erradas. Um menino na escola usa uma lousa até concluir os primeiros graus, quando já não comete erros de contas. Mais tarde, ele descarta a lousa e usa lápis e papel, em seguida usa a tinta. O mesmo acontece conosco. Quando aprendemos a viver corretamente não cometendo tantos erros, quando estivermos libertos das paixões, dos sentimentos de ódio e vingança, recordaremos todas as nossas vidas passadas.

- Parece correto, mas não posso entender como não me lembro de ter vivido antes.

- Pense sobre o que lhe disse e talvez possa entender.

Jimmie achou melhor parar a explicação por aí e deixou o rapaz ir embora. Sentia-se decepcionado, também, pois sua incapacidade em transmitir um assunto tão claro, era algo desalentador para seu entusiasmo. Não tinha percebido que cada um tem suas limitações, e que as limitações de um estão a uma distância diferente do centro das limitações de outro. Um grande círculo pode conter um menor e compreendê-lo, pois percebe que há mais espaços além desse círculo pequeno, mas o círculo menor não pode compreender o maior até que tenha aprendido a raciocinar através da existência de círculos ainda menores e que pode haver algo mais além de suas limitações. É fácil para nós, vermos as limitações dos outros, mas difícil ver as nossas próprias, até que aprendamos primeiro a tirar a trave que está em nosso olho antes de tentar remover o cisco que está no de nosso irmão.

E agora começou para Jimmie uma vida na qual encontrava pouco tempo para levar avante esse trabalho que tanto desejava realizar. Seu regimento foi enviado de volta às trincheiras, a vida extenuante e a pouca privacidade e calma de que dispunha, impediam que avançasse em seu próprio desenvolvimento. Contudo, ele conseguiu executar a maior parte dos simples exercícios que o Sr. Campion lhe havia recomendado e conseguiu pronunciar, de vez em quando, algumas palavras sobre a vida superior quando lhe surgia uma oportunidade. Mas o excitamento da luta, seu regimento estava agregado a um contingente do exército britânico e juntos estavam contendo o avanço alemão na primavera de 1918, fazia com que sua atuação ficasse quase que totalmente voltada para os assuntos militares. Porém, o seu caso estava em mãos mais poderosas que as suas e um dia, em um ataque para retomar uma trincheira, ele recebeu uma bala no braço direito e foi mandado mais uma vez para um hospital, o que o deixou furioso pela sua falta de sorte.

Neste hospital não havia nenhuma Louise e mal havia curado seu ferimento, recebeu ordens de embarcar imediatamente para a América para os serviços de instrução em um dos grandes campos de treinamento. Tentou, em vão, conseguir uma licença que o permitisse procurar Louise, mas a situação era urgente e as ordens eram peremptórias. Escreveu uma carta desesperada para o Sr. Campion, mas não obteve nenhuma resposta, e foi forçado a embarcar tendo a seu cargo um pequeno contingente de homens feridos, sem realizar o trabalho que almejava. Deixou na França Louise e o Sr. Campion, seus camaradas ainda lutando com unhas e dentes para conter a invasão cinza, e, como declarava amargamente, sentindo-se em perfeitas condições físicas, ser forçado a voltar a seu país antes de terem vencido a guerra.

Oh! a amargura daquele embarque, deixando para trás, na França, a Grande Guerra, na qual desejava continuar; a moça que amava e o homem a quem procurava como guia no grande trabalho que debilmente havia vislumbrado! Deixou para trás todas as grandes atividades que haviam entrado em sua vida e a haviam mudado tão completamente; deixava tudo para quê? Por uma segurança que desprezava, por um trabalho que sentia que outros poderiam fazer melhor que .ele, por uma vida de facilidades mal recebida e, acima de tudo, por aquele amargo sentimento de separação daqueles que desejava ter ao seu lado.

Jimmie embarcou deprimido por um sentimento de injustiça e de calamidade. Seu braço deu-lhe bastante trabalho, pois precisava tê-lo a maior parte do tempo em uma tipóia, e constatava que, se estivesse nas trincheiras, mal se daria conta desse contratempo e da dor que ele causava. Mas agora, pequenas coisas o aborreciam e as ninharias pareciam-lhe importantes. Tornou-se, não propriamente mal humorado, pois Jimmie possuía uma natureza alegre, mas menos risonho e animado. Passava o mínimo tempo possível fora de sua cabine e dava a impressão de estar sofrendo mais da comoção da explosão do que do ferimento em seu braço. Como essa comoção era considerada muito especial e atua de mil maneiras diferentes, suas pequenas fraquezas não suscitavam comentários e, com humor, contemporizava-se com elas na medida do possível.

O barco já navegava há dois dias e duas noites; já era tarde da noite do terceiro dia, bem depois do escurecer, e ele encontrava-se sozinho debruçado no corrimão do convés olhando pensativamente para o mar. A lua estava surgindo, uma luz que começava a aparecer, dando pouca luz para não ofuscar a beleza das estrelas. A brisa estava soprando suavemente vinda do sul, e o grande navio navegava através da escuridão sem que nenhuma luz lhe indicasse o caminho, balançava lenta e brandamente, levantando ligeiras ondas ao avançar com dignidade em seu movimento, como se, de algum modo, sentisse sua existência separada e o valor do precioso carregamento humano que abrigava.

Jimmie debruçava-se respirando profundamente o ar salgado que era tão limpo e fresco em comparação à atmosfera da Terra-de-Ninguém, carregada pelo ódio humano e pelos destroços da guerra humana, e observava cada longa onda que batia lentamente no costado do navio, levantando-o tão facilmente, tão tranqüilamente, como se levantar mil toneladas fosse uma simples brincadeira. A demonstração de tão grande poder foi trazendo à mente de Jimmie, dilacerada por tristeza e desilusão, um sentimento de calma e de descanso e quando olhou do oceano para o céu e viu as grandes estrelas brilhando quietamente acima dele, como haviam brilhado sobre Colombo e os marinheiros da Armada Espanhola, como haviam brilhado sobre Roma e Cartago, sobre Babilônia e Baalbec, sobre os construtores das pirâmides, sobre os exércitos e a armada da antiga Atlântida, sentiu nascer dentro de si uma leve percepção daquele grande Poder, cujo Ser eles testemunhavam e cujo propósito sublime não podia ser desviado nem por um fio de cabelo, nem mesmo por uma grande manifestação de todas as pessoas do globo.

Sua mente retrocedeu na hist6ria e ele imaginou as guerras, pragas, pestes e fome; miríades de cenas de batalhas, assassinatos e mortes repentinas, de vidas de pessoas desconhecidas, de amores e ódios de homens e mulheres mortos há milhares ou dezenas de milhares de anos atrás, sobre os quais estas mesmas estrelas haviam brilhado com a mesma tranqüilidade, esperando, imperturbáveis, o desenrolar do Grande Plano de Deus.

Pareceu-lhe que os quadros destas coisas passavam rapidamente por sua mente como se o mundo oscilasse em seu caminho pelo espaço, deixando girar atrás de si, como uma densa nuvem de fumaça visível aos olhos espirituais, as preces e lágrimas de toda a humanidade, os gritos dos feridos e dos moribundos em todos os campos de batalha desde o começo da hist6ria, os apelos de misericórdia, a agonia do desespero, a luta das nações, o surgimento das raças e sua queda, o grito dos famintos - todos unidos nesta densa nuvem preta que deve elevar-se até ao Trono de Deus. E através dela surgia e ouvia-se aquele mesmo apelo desesperado: Por quê?

Então, ele pensou em sua pequena parte no Drama Supremo, como tinha sido protegido e como lhe foi mostrado pouco do grande Plano, como havia sido levantada uma ponta da obscura cortina, por um momento, para que pudesse ter um vislumbre da­quilo que estava além, de modo que soubesse como podia ajudar.

Como havia cumprido sua missão? O que havia feito? Em sua conversa com o soldado que lhe havia feito aquelas perguntas no local do “Y”, o que havia conseguido? Nada!

Sua consciência atormentava-o, no entanto, como poderia ter argumentado? Essa questão, segundo começou a compreender, era muito grande para ser resolvida em uma explosão de entusiasmo, por mais ardente que fosse. Devia ser a tranqüila e firme obra do tempo, contínua, infatigável, buscando todas as oportunidades, não intimidada pelo fracasso, e satisfeita se, aqui e lá, pudesse ajudar uma pessoa, ainda que ligeiramente. Então, talvez, depois da guerra, poderia voltar a Paris e reencontrar o sábio Sr. Campion o “Irmão Maior”, e aprender como se preparar para a Grande Obra.

E, à medida que seu pensamento se fixava naquele firme propósito de “continuar” não importando o quanto a tarefa parecesse desanimadora, a calma das grandes estrelas encheu seu coração, e voltou-se para procurar sua cabine e, talvez, escrever algumas palavras mais em uma carta para Louise, que ele pretendeu enviar-lhe assim que chegasse à terra firme.

Ao fechar cuidadosamente a porta de sua cabine, antes de acender a luz que, como oficial, tinha a permissão de usar e que estava bastante protegida para não deixar escapar nenhuma claridade que pudesse ser vista por submarinos inimigos, sua mente estava preenchida pela magia das estrelas, do mar e decidida com a resolução de provar que, com o tempo, seria digno da confiança que havia sido depositada nele. Desejava mostrar ao Sr. Campion, se algum dia pudesse encontrá-lo novamente, que não era um aluno totalmente indigno.

Mas não estava preparado para a emoção que experimentou ao afastar-se da porta. Sentado serenamente em uma cadeira da cabine, como se sua presença fosse a coisa mais natural do mundo, estava o homem em quem Jimmie acabara de pensar: Sr. Campion.

Jimmie, dominado pela surpresa, balbuciou: “Oi... Oi...” e estendeu sua mão para seu inesperado visitante. Por um instante, não foi capaz de pensar em outra palavra para expressar-se, tão surpreso estava. Mas o Sr. Campion, ao invés de estender-lhe a mão, indicou simplesmente a Jimmie, com um sorriso, que se sentasse na beira do beliche.

- Não estou aqui em meu corpo físico, de maneira que não posso apertar suas mãos, mas estou feliz que você possa ver-me tão claramente. Vim para levá-lo a uma pequena excursão, se não estiver com medo de aventurar-se, e como dispomos de pouco tempo, se quiser deitar-se em sua cama e dormir, começaremos nossa viagem.

Jimmie poderia ter feito algumas perguntas ou expressado alguma apreensão se o Sr. Campion não tivesse usado aquela expressão “se você não estiver com medo”, mas depois deste desafio ele sentiu que não ficava bem para um oficial do exército americano recuar. Então, com toda a calma desligou a luz, deitou-se confortavelmente na cama e quase sem sentir encontrou-se de pé olhando para seu corpo estendido na cama e para toda cabine, tudo tão claramente visível como se estivesse acontecendo à luz do dia. O Sr. Campion, não mais evitando contato físico, estava de pé ao seu lado com uma mão em seu ombro.

- Esta é a sua primeira saída consciente do corpo, e não deve temer que não venhamos a encontrar o navio novamente ou que algo aconteça a ele enquanto você estiver ausente. Segure minha mão e confie em mim implicitamente, e o que quer que possa ver, não deixe o medo apossar-se de você. Venha.

Elevaram-se diretamente pela estrutura do navio, flutuaram por um momento sobre seus mastros, contemplando-o, pois era uma linda visão vê-lo mergulhar nas calmas e ligeiras ondas, cenário plenamente visível à sua visão etérica.

Apesar das garantias que o Sr. Campion havia dado, Jimmie estava com medo. Lá embaixo estava seu corpo estendido no beliche, provavelmente bastante seguro, mas indo para um lado enquanto ele ia para outro. O tempo estava calmo, mas não era o tempo que obrigava o navio a navegar a pleno vapor e desprovido de luz. Suponhamos que um submarino - ele refreou-se. Muitas vezes havia escalado o topo de algum lugar, e sempre que o fazia sentia medo, mas ninguém que o visse saberia que o tenente Westman estava com medo. Jimmie tinha a verdadeira coragem para cumprir seu dever, estivesse ou não temeroso de fazê-lo, e além disso, tinha ouvido muitos homens corajosos admitir que sentiam medo, daí não ter vergonha de demonstrar que estava com medo e jamais fez transparecer esse receio. Portanto, decidiu que essa experiência não faria aflorar qualquer expressão do medo que realmente sentia. Afastou-se do navio e olhou diretamente para o rosto de seu guia com o sorriso de quem estava disposto a enfrentar tudo que pudesse ocorrer.

 

 

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