10. A decaída de Penélope
PENELOPE
Representada como uma estátua no Vaticano
Para melhor intelecção do que se disse no capítulo anterior, acrescente-se uma breve referência a uma outra tecedeira — Penélope.
A lenda de Penélope, a fidelíssima esposa de Ulisses, é bem conhecida. Muitos autores antigos a glosaram mas foi Homero quem pela primeira vez a narrou, na Odisseia. Durante os vinte anos em que Ulisses esteve ausente devido à Guerra de Tróia e às aventuras que lhe sucederam no regresso e retardaram a sua volta ao lar, Penélope sempre resistiu a quebrar os votos matrimoniais. Rodeada de pretendentes que a consideravam viúva, fez saber que escolheria um novo marido apenas quando terminasse uma certa teia que se propôs tecer — a mortalha do sogro dela, Laertes, já muito idoso e não muito distante dos últimos dias de vida. Penélope ordenou às servas que levantassem um grande tear na sala e pôs-se a tecer o funéreo manto; durante o dia, trabalhava no tecido; de noite, porém, às escondidas, desmanchava quanto urdira à luz do dia. Deste modo conseguiu enganar os pretendentes durante três anos, até que foi descoberta — mas Ulisses chegou a tempo e trucidou os pretendentes com requintes de crueldade… (Homero 2003, II, 85-128; XIX, 104-250; XXII, 1-501).
Odysseus and Penelope by Francesco Primaticcio (1563)
Ao contrário de Arachne, mulher forte da mesma raça das Amazonas que venceram as Górgonas, conquistaram os Atlantes, cercaram Atenas e invadiram o Egipto, até serem vencidas por Teseu (advento do patriarcado), Penélope é a submissa, a que aceita o destino, e a sua teia é a do subterfúgio para permanecer enclausurada no lar, fiel ao homem e a ele submetida. Tão submetida ao homem que obedece ao próprio filho, Telémaco, «para agradar aos deuses». A arte de Penélope não foi, assim, coarctada por nenhuma deusa em cólera, mas tão-pouco se insere numa autêntica tradição iniciática: é apenas a arte e o mester de quem aprendeu dos homens e não dos Mistérios, é a arte das tecedeiras e bordadoras populares, domésticas, que se limitam a transmitir antigos simbolismos e segredos de ofício de mães para filhas mas que ignoram os verdadeiros traçados de Geometria Sagrada, capazes de proteger o templo-corpo do ser humano das fatais arremetidas das «trevas exteriores».
11. Um fio tradicional alternativo?
Dissemos mais atrás que a ROT foi interrompida num dado momento histórico, o seu fio tradicional regular perdeu-se e as mulheres perderam em consequência a sua específica e feminina Iniciação de ofício protectivo.
Ora bem, talvez na verdade não tenha sido totalmente quebrado, esse fio tradicional, tendo-se misteriosa e ocultamente transmitido através das curandeiras, ou médicas, mulheres que lidam eficazmente com os tecidos orgânicos, outra forma de tecedeiras, e dessa Ordem oculta há vestígios ao longo dos tempos, dos quais um dos mais ilustrativos — e impressionantes… — é o da perseguição que foi movida às curandeiras pelos homens ciosos da «sua» (deles) arte médica, e correlatas prerrogativas patriarcais, perseguição que muito contribuiu para a famosa caça às bruxas nos séculos XIV a XVII.
Ainda não há muito tempo, historicamente falando, a profissão de médico só podia ser desempenhada por homens, e por homens de barba! De facto, no século XIX e no início do século XX um jovem médico tinha de esperar que lhe crescesse uma barba de severo porte antes que pudesse ser considerado respeitável e lhe fosse concedido acesso às alcovas de senhoras doentes sem escândalo dos respectivos pais, irmãos ou maridos. Bom, este truque das barbas não era de todo inocente e não tinha apenas a ver com o pudor das damas que aos médicos recorriam, era um truque manhoso do «género masculino» para impedir que as mulheres ingressassem na profissão médica, pois dificilmente poderiam ter barba a menos que fossem alguma rara curiosidade de circo.
A verdade é que as mulheres, portadoras de vida no seu seio mátrio, sempre manifestaram desde remotas idades uma tendência natural para ser médicas, ou no mínimo curandeiras, pela sua arte de lidar eficazmente com tecidos vivos:
«As mulheres sempre praticaram a arte de curar. Elas foram as médicas e anatomistas não licenciadas da história ocidental. Faziam os abortos, eram enfermeiras e aconselhadoras. Eram farmacêuticas, cultivando ervas medicinais e trocando entre si os segredos do seu uso. Eram parteiras, viajando de casa em casa e de aldeia em aldeia. Durante séculos as mulheres foram médicas sem grau académico, excluídas dos livros e das instituições de ensino, e passavam as suas experiências de vizinha para vizinha e de mãe para filha. Eram chamadas “mulheres de virtude” pelo povo, bruxas ou charlatãs pelas autoridades. A medicina faz parte da herança histórica das mulheres» (Ehrenreich & English 1973, 2).
Longe nos levaria o fascinante (e aterrador…) percurso que fez com que os homens se assenhoreassem dum excelso labor tradicionalmente desempenhado por «mulheres de virtude», travando uma luta sem quartel contra elas, com fogueiras e tudo, até ao imperialismo das barbas do século XIX. Limitemo-nos a alinhar alguns marcos históricos de referência.
A deusa Gula,
que por vezes assumia outras designações: Nintinugga, Ninisinna, Baba…
Na fase histórica mais antiga da Mesopotâmia, mais concretamente na primitiva Suméria, os médicos que praticavam métodos de «cura natural» invocavam a deusa Gula que por vezes assumia outras designações: Nintinugga, Ninisinna, Baba… Aliás, as actividades básicas mais importantes para a subsistência da vida civilizada estavam a cargo de deusas: o uso e tecelagem de vestuário, a alimentação com trigo e o fabrico e fermentação da cerveja, e o seu consumo. Assim, a lã representada pela deusa Lahar, é tecida e transformada em veste pela deusa Uttu; a deusa Nisba tinha a seu cargo o crescimento e a ceifa das searas; a fermentação da cerveja era a divina obra da deusa Ninkasi. Quanto à arte médica, a deusa que dela se encarregava era como dissemos Gula, a mais invocada porque conhecia as plantas, sendo por isso a grande médica do povo, e tanto ela como as suas congéneres eram por vezes referidas nos textos cuneiformes como «ressuscitadoras de mortos» (Frymer-Kensky 1992, 32-39).
Atente-se na seguinte particularidade, quase se poderia dizer alquímica, da importância da transmutação associada à primordial função hierofântica da divina Iniciação feminina: «Cozinhar os grãos de trigo, fermentar cerveja e tecer roupas e vestimentas, são actividades que partilham um atributo essencial: são transformações. Linho e lã transformam-se em vestuário; grãos de cereais, indigestos, transformam-se em pão e cerveja. Assim, substâncias naturais que não são imediatamente benéficas para a humanidade transformam-se em produtos culturais preciosos para o bem-estar humano. Esta criação de alimento e vestuário “civilizados” a partir de elementos naturais é a transformação básica da “natureza” em “cultura”, e, como tal, sempre foi uma ocupação arquetípica feminina» (Frymer-Kensky 1992, 35).
Com o decorrer do tempo as competências tradicionalmente atribuídas a deusas foram sendo transferidas para deuses machos, e usurpadas por estes: na transição do segundo para o primeiro milénio a.C., na Mesopotâmia, a tradição mágica de cura concentrou-se finalmente no deus Marduk, depois de ter passado entretanto para o filho de Gula, Damu, que de início era uma filha. O mesmo sucedeu com outras funções que ficaram sob a tutelagem dos deuses machos An, Enlil, Enki, Ea…
A historiadora Tikva Frymer-Kensky (1943-2006), professora de Bíblia hebraica e história do judaísmo na Universidade de Chicago, e especialista em assiriologia e sumerologia, pormenoriza com uma fascinante soma de dados o desenrolar histórico que paraleliza a sociedade civil mesopotâmica e o universo dos deuses: o «eclipse das deusas», como lhe chama Frymer-Kensky (Frymer-Kensky 1992, 70-80), reflecte uma transição semelhante nas sociedades antigas, na relação de primazias entre funções tradicionalmente femininas que a pouco e pouco se tornaram tradicionalmente masculinas, na onda de mudanças sociológicas que abriram caminho para o que tem vindo a ser chamado «patriarcalismo». Ainda que não sejam bem conhecidas todas as razões para este progressivo declínio das funções sociais das mulheres — e seu reflexo nos céus, ou nas «deusas» —, tal declínio da visibilidade feminina não é plausível que possa ser atribuído apenas a causas étnicas, como já se tem tentado, mas talvez tivesse sido, eventualmente, função da mudança do regime das cidades-Estado para o regime das muito mais vastas nações-Estado, com todas as mutações e reconversões desencadeadas sobre os respectivos sistemas sociais e económicos. Uma tal transição é sobretudo sensível a partir do período babilónico antigo (aprox. 1600 a.C.), em contraste com a preponderância feminina, que já vinha desde há mais de 3000 anos a.C.
12. Das tradições mesopotâmica e judaica à modernidade ocidental
Tendo Israel em parte sofrido não só a influência egípcia (mito de Moisés iniciado no Egipto conforme nos testemunha o livro dos Actos dos Apóstolos 7, 22: «Moisés foi instruído em toda a sabedoria [gr. sophia] dos egípcios, e era poderoso nas suas palavras e nas suas obras»), como também a dos povos mesopotâmicos (sumérios, acádios, assírios…) não surpreende que tenha herdado muito da sua cultura e dos seus tiques sócio-religiosos, tal como não surpreende, igualmente, que o deus tribal Jahvé dos hebreus, na transição do henoteísmo para o monoteísmo, tenha conglobado em si as tais competências sucessivas de deusas e deuses, como já vinha sucedendo na área do Médio Oriente onde se insere a história hebraica. Daí resultou o domínio e o poder que a Bíblia hebraica atribui a Jahvé sobre o corpo humano, domínio que se exerce através do poder de cura e de procriação, além de todos os outros poderes que primitivamente pertenciam a um panteão de deusas e deuses (Frymer-Kensky 1992, 95).
MOISÉS, DE MICHELANGELO
Ao observar atentamente a estátua, pode-se verificar que Moisés possui um par de chifres acima os seus olhos, nascendo por baixo dos seus cabelos. Uma explicação para o sucedido poderá ser a tradução errada de karan em vez de keren que significa raios (de luz) em vez de cornos, feita por São Jerónimo para o latim.
No Ocidente, e por obra da tradição religiosa-cultural judaico-cristã, este patriarcalismo despótico do todo-poderoso Jahvé teve os seus reflexos sobre o comportamento da Igreja e das instituições de poder em relação ao conflito que começou a opor, às «mulheres de virtude» conhecedoras dos mistérios dos tecidos orgânicos, os homens que se assenhorearam do poder eclesiástico e do poder universitário: «Enquanto as bruxas exerciam as suas práticas curativas entre o povo, as classes dominantes cultivavam a sua própria estirpe de curandeiros seculares: os médicos formados pelas universidades. No século que precedeu o início da “caça às bruxas” — o século XIII — a medicina europeia estabeleceu-se firmemente como ciência secular e como profissão. A profissão médica, então, empenhou-se activamente na eliminação das mulheres curandeiras — por exemplo, impedindo-lhes o acesso às universidades — muito antes que tivesse início a caça às bruxas» (Ehrenreich & English 1973, 14).
Malleus Maleficarum em uma edição de 1669, Lyon.
A partir do século XV, mais concretamente a partir de 1486 quando foi pela primeira vez publicado o terrível Malleus maleficarum [«Martelo das bruxas»], da autoria dos frades dominicanos Heinrich Kramer e Jacob Sprenger, onde se preconizam com esmeros de sadismo as torturas a que se devem submeter as bruxas para obrigá-las a confessar, com extensas listagens de todos os artifícios que o diabo utiliza e as técnicas para detectá-los, e onde se diz: «Ninguém causa mais dano à Igreja católica do que as parteiras» —, a partir do século XV, dizíamos, intensificou-se por toda a Europa a vaga persecutória dos chamados bruxos e bruxas, que se iniciara no século anterior. Sob os auspícios desse medonho livro, sancionado pela bula Summis desiderantes affectibus do papa Inocêncio VIII, durante três séculos foram entregues à tortura e queimados cerca de 200.000 seres humanos, dos quais 85 por cento eram mulheres.
PERSEGUIÇÃO ÀS BRUXAS
Bruxa, em sânscrito, quer dizer “mulher sábia” ou sabedoria feminina, ou seja, deusa, mulher mágica, mulher = bruxa.
As universidades médicas, controladas pela Igreja e pelas classes dominantes, utilizavam métodos que muito deviam à astrologia e à magia, embora recobrissem tais práticas pouco empíricas com a capa da santidade católica, pensando-se que as encantações e os rituais semi-religiosos seriam altamente eficazes; o médico de Eduardo II de Inglaterra, por exemplo, que tinha um bacharelato em teologia e um doutoramente em Medicina, por Oxford, receitava, para as dores de dentes, que se escrevesse a seguinte frase na mandíbula do paciente: «Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, Ámen», ou então que se espetasse uma agulha numa lagarta passando-a depois pelo dente. «Era este o estado da ciência médica ao tempo em que as bruxas-curandeiras eram perseguidas como praticantes de magia. Havia bruxas com extensos conhecimentos dos ossos e dos músculos, de ervas e de drogas, ao passo que os médicos conformavam os seus prognósticos à astrologia e os alquimistas se esforçavam por transformar o chumbo em ouro. Tão grande era o conhecimento das bruxas que Paracelso, considerado o “pai da medicina moderna”, queimou o seu tratado farmacêutico, confessando que “tudo quanto sabia, tinha-o aprendido das feiticeiras”» (Ehrenreich & English 1973, 16).
PARACELSO
desenvolvendo o Experimento de Palengenesis
J.A.Knapp
Por conseguinte, a Igreja e as universidades médicas não podiam tolerar que as curandeiras obtivessem resultados positivos com as suas práticas e os seus conhecimentos, sobretudo porque o povo confiava mais nelas do que nas virtudes da fé, como nota Jules Michelet (1798-1874): «Aos domingos, depois da missa, os doentes vinham em magotes clamando por auxílio, e tudo quanto obtinham eram palavras: “Vós pecastes, e Deus aflige-vos. Rendei-lhe graças: sofrereis muito menos tormentos na vida futura. Suportar, sofrer, morrer. Não dispõe a Igreja de orações pelos mortos?”» (La sorcière, 1862).
«Quem eram, pois, as bruxas e quais os “crimes” que cometiam e que suscitavam uma repressão tão viciosa por parte das classes superiores? Decerto que durante os séculos de caça às bruxas, a acusação de “feitiçaria” englobava uma multidão de pecados que iam da subversão política e da heresia religiosa até à obscenidade e à blasfémia. Mas três acusações centrais emergem repetidamente na história da feitiçaria europeia. Primeiro, as bruxas eram acusadas de todos os crimes sexuais possíveis contra os homens — ou seja, e muito simplesmente, eram “acusadas” de sexualidade feminina. Segundo, eram acusadas de estarem organizadas. Terceiro, eram acusadas de terem poderes mágicos que afectavam a saúde — quer para prejudicar, quer para curar. Com muita frequência eram acusadas especificamente de possuir perícia e capacidades médicas e obstetrícias» (Ehrenreich & English 1973, 9).
Ou seja, no fundo as bruxas eram incriminadas pela mais fantástica de todas as acusações: eram não só culpadas de matar e envenenar, de crimes sexuais e de conspiração — mas sobretudo de ajudar as pessoas e de as curar.
"Macbeth and Banquo meeting the witches on the heath" de Théodore Chassériau
13. E se a ROT afinal não desapareceu?
3. A Ordem de Melquisedec e as formas iniciáticas originárias |
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12. Das tradições mesopotâmica e judaica à modernidade ocidental |
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