4. O estabelecimento das Ordens e os mitos fundadores
No que concerne especificamente à Iniciação feminina, as Ordens que conferem a Iniciação real ou cainita e a Iniciação sacerdotal ou sethiana assumem especial relevância: uma delas (da linha cainita), na sua vertente especificamente masculina, tem subsistido até hoje (referimo-nos à Ordem Maçónica), ao passo que a respectiva contraparte feminina (a Ordem de Arachne) viu-se obliterada num dado momento histórico, tendo sido interrompida a sua transmissão iniciática regular. Por outro lado, e de modo semelhante, a Iniciação da linha sethiana na sua vertente feminina, que existiu nas comunidades cristãs de tipo gnóstico, foi igualmente obliterada mas por obra da hierarquia eclesiástica proto-ortodoxa e ortodoxa, masculina, que transformou a Iniciação sacerdotal em Ordenação sacerdotal, sendo esta última arbitrariamente vedada às mulheres e inscrita, com esta restrição, no cânone da Igreja católica desde os seus inícios até hoje (Macedo 20002, 233-245).
Para melhor entendimento, recuemos até à instauração do mito primordial.
ADÃO E EVA
Albrecht Dürer (Nuremberga, 21 de maio de 1471 — Nuremberga, 6 de abril de 1528)
De acordo com o mito bíblico relatado no Génesis, Adão e Eva viviam em inocência no paraíso (Eden), até que a «Serpente» convenceu Eva a comer os frutos da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal; por sua vez, Eva deu a comer esses frutos a Adão, os olhos de ambos abriram-se e perderam a inocência (Génesis 3, 1-13). Com esse conhecimento, Eva e Adão entregaram-se à prática das relações sexuais e Eva concebeu Caim (Génesis 4, 1). Desta lenda existe uma outra variante, extrabíblica, que remonta à tradição targúmica (Targum Pseudo-Jonathan Genesis 4, 1) e refere que o primogénito de Eva, Caim, não era filho de Adão mas de um Anjo caído, Samael. Segundo esta variante, os Elohim criaram primeiro Eva, e um deles, Samael, rebelou-se contra Jahvé, e a ele se juntaram outros Elohim rebeldes (Lucíferos). Samael uniu-se a Eva em contravenção ao que estaria programado para a espécie humana por Jahvé, grão-chefe de todos os Elohim, e dessa união nasceu Caim, que seria portanto de estirpe semidivina (pai divino, mãe humana), dotado com as respectivas capacidades: inteligência, inventividade, perícia criativa, herdadas de seu pai Samael — embaixador Lucífero de Marte na Terra (Heindel 19732, 298-299; Heindel 199510, 71-75).
Anotemos desde logo que, tanto no mito bíblico, como no mito extrabíblico, Caim é sempre o primogénito, e nasce, quer num caso, quer no outro, em consequência da intervenção mais ou menos directa de um Espírito Lucífero, marciano, designado por «Serpente» por ter despertado o Fogo Serpentino da kundalini, transmitindo aos seres humanos o conhecimento da reprodução sexual bem como o conhecimento do progresso e desenvolvimento intelectual.
Antes porém de irmos mais adiante convém esclarecer alguns pontos sobre os quais a opinião dos esoterólogos diverge da opinião institucionalizada das Igrejas. A palavra hebraica elohim, que as Bíblias correntes traduzem por «Deus», na verdade é um plural, «deuses», e nessa forma plural aparece mais de duas mil vezes na Bíblia hebraica, a começar pelo primeiro capítulo do Génesis: «No princípio Elohim criou o céu e a terra» (Génesis 1, 1). A forma singular, eloah, também se encontra no Antigo Testamento: só no livro de Job, por exemplo, aparece cerca de 40 vezes. Excluída a frágil explicação do plural majestático, que de facto em hebraico não existe, certos autores interrogam-se acerca do real significado de não poucas passagens bíblicas, como por exemplo o seguinte versículo: «Elohim criou o ser humano [hebr. ha-adam] à imagem de si próprio, à imagem de Elohim o criou, macho e fêmea os criou» (Génesis 1, 27). Eis uma expressiva sentença que tem continuado a desencadear as mais controversas especulações: o Deus plural Elohim seria andrógino? Ou: não se trataria antes dum arcaico panteão de deuses e deusas, machos e fêmeas, aos quais a criatura humana se assemelharia?…
Um certo número de historiadores (cf. Frymer-Kensky 1992; Paul 2000; etc.) admite que os israelitas, à semelhança de outros povos que os antecederam no Médio Oriente como os sumérios, os acádios, os ugaritas, os egípcios, começaram por ser politeístas, em seguida tornaram-se henoteístas (devoção a um deus máximo exclusivo, o deus tribal Jahvé, aceitando embora a existência doutros deuses menores), até que finalmente so fixaram no monoteísmo conforme nos testemunham textos tardios como o Deuteronómio, em que o deus tribal Jahvé acabou por eliminar todos os outros deuses tornando-se único e universal: «Escuta, Israel, Jahvé é o nosso Deus, Jahvé é um só» (Deuteronómio 6, 4)
As mais divulgadas correntes esotéricas neo-ocultistas (Blavatsky, Heindel, Steiner, Aïvanhov, etc.), inspirando-se em autores de theosophia perennis dos séculos XVII e XVIII, e anteriores, sugerem que os Elohim correspondem às seis Hierarquias Criadoras que trabalharam na evolução do ser humano a fim de trazerem o homem até ao ponto de adquirir uma forma física por meio da qual o Espírito interno pudesse funcionar. Assim, Jahvé seria o chefe dessas Hierarquias, e não exactamente o Ser Supremo com que redactores tardios o confundiram. Não podemos esquecer que os livros do Antigo Testamento bíblico tais como os conhecemos hoje, sobretudo os mais primitivos, resultaram de uma longa e arcaica tradição oral que foi por fim passada a escrito por sucessivas gerações de redactores e escribas, com as correcções, reformulações e deformações inevitáveis.
5. As duas linhagens: a do Fogo e a da Água
A ÁRVORE YGGDRASIL E AS DUAS LINHAGENS
J.A.Knnap
Ora, continuando a descrição do mito primordial que vínhamos relatando, o Espírito Lucífero Samael ao ir contra as determinações de Jahvé e ao ter dotado os seres humanos com o Fogo do Conhecimento (compare-se com o mito grego de Prometeu!), incorreu na ira deste chefe hierárquico e foi obrigado por Jahvé a afastar-se de Eva antes do nascimento do seu filho Caim, que ficou assim conhecido como filho da viúva. Em seguida, Jahvé criou Adão para com ela se unir (o nome Eva vem duma palavra hebraica, hawah, que significa «dadora da vida»). As correntes esotéricas que atrás referimos, e outras da mesma vertente neo-ocultista, pormenorizam e enfatizam o facto de os Espíritos Lucíferos (associados alquimicamente ao Fogo e astrologicamente ao planeta Marte) terem desvendado aos seres humanos o conhecimento da reprodução física (sexo) e da reprodução intelectual (voz, palavra de razão); Caim, de estirpe marcial e luciferina, cujo nome deriva duma raiz hebraica primitiva que significa «metalúrgico», deu naturalmente origem a uma descendência de artífices e de inventores — homo faber —, como se lê no capítulo 4 do primeiro livro bíblico (Génesis 4, 17-24).
A Morte de Abel, gravura de Gustave Doré, (1832-1883)
Por sua vez o segundo filho de Eva, Abel, este sim de Adão, acabou por ser morto por Caim, e a razão desta morte insere-se numa lógica histórico-civilizacional: Abel era pastor, e Caim agricultor. A pastorícia primitiva, por força da transumância a que é obrigada em busca de novos pastos, indicia um estágio anterior de evolução da humanidade em relação à agricultura, produto de técnicas de manipulação genética das plantas e do cuidado e amanho das terras que permitem ao homem fixar-se e crescer colectivamente, estabelecendo-se em núcleos urbanos. A morte de Abel por Caim não foi um mitológico fratricídio, mas um facto comum à história das civilizações: Caim não matou o seu irmão Abel, matou o «modo primitivo de viver», o homo faber acaba por «matar» o outro homem, o que se mantém regressivo no estágio de pastorícia.
Continuando o mito, ficamos a saber que, para substituir Abel, Adão e Eva geraram Seth, o qual por sua vez gerou Enosh dando origem à linhagem do homo pius — a classe devocional e sacerdotal —, tal como se diz na Bíblia: «Foi então que os homens começaram a invocar Jahvé pelo seu nome» (Génesis 4, 26).
Genealogia de Adão até Davi
segundo a Bíblia |
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Adão até Sem |
Sete |
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Arpachade até Jacó |
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Judá até Davi |
Ficam assim bem estabelecidas as duas grandes linhagens:
(1) A do homo faber que trabalha o fogo: — Dele derivam o aparelho de Estado e os reis, os artífices, a indústria, descendentes de Caim e associados ao Lucífero planeta Marte, deus do ferro, do fogo e da guerra. A respectiva Organização Iniciática, expressão interna do sagrado real, é o conjunto polar de duas Ordens: a Ordem Maçónica (ROC, ou Real Ordem dos Construtores) e a Ordem de Arachne (ROT, ou Real Ordem das Tecedeiras) (Macedo 20002, 211-218);
(2) A do homo pius submetido à água benta: — Dele derivam os clérigos, os devotos, os sacerdotes, descendentes de Seth e associados à húmida Lua, planeta da alma, da fecundação, das emoções. A respectiva Organização Sacramental, expressão interna do sagrado sacerdotal, é a Igreja (Heindel 199510, 20-22).
6. As Ordens sagradas primordiais: cainita e sethiana
Acabámos de ver, segundo o que ensinam as mais comuns correntes esotéricas de tradição judaico-cristã e/ou hermesista neo-alexandrina, as origens das formas primordiais de Iniciação, a Iniciação real ou cainita (de Caim) e a Iniciação sacerdotal ou sethiana (de Seth). Convém deixar bem claro desde o início, e tal como já se esboçou mais atrás, que os respectivos poderes hierofânticos, o poder real e o poder sacerdotal, são sagrados, em oposição aos poderes e actos profanos. Já agora, e para acréscimo de esclarecimento, anotemos que o termo «sagrado», que deriva do particípio latino sacratus, «consagrado», tem a sua origem inicial no verbo latino secedere, que significa «retirar-se», «apartar-se», «afastar-se», o que implica desde logo a ideia de alguma forma de núcleo iniciático, reservado e restrito, e da correlativa disciplina do segredo (disciplina arcani), no templo, no palácio ou no laboratório — no que se opõe ao que é permissível em campo aberto e aos que apenas podem ficar fora do templo, ou seja, os profanos (latim: pro fanum, «diante do templo»), não lhes sendo permitido o acesso-ingresso no respectivo recinto reservado.
Nunca será de mais repetir e acentuar que tanto o sagrado real como o sagrado sacerdotal, opondo-se embora ao mundo profano por serem campos sagrados, são-no todavia segundo modelos que têm seguido percursos divergentes ao longo duma extensa fase da História, senão mesmo conflituosos, como podemos observar por exemplo em todas as lutas que durante séculos opuseram, no Ocidente, o papado aos reis e imperadores. (A confirmar a sacralidade da linhagem real, e não apenas da eclesiástica e devocional, observemos o facto não inocente de os imperadores germânicos que se opuseram ao papado na Idade Média considerarem o seu império como Sacro Império Romano).
A Iniciação sethiana, ou Iniciação sacerdotal, manteve-se como Iniciação regular através de diversas tradições antigas (mesopotâmica, persa, judaica, grega, etc.) até ao momento da exoterização progressiva da tradição cristã com a preponderância crescente das comunidades cristãs proto-ortodoxas e ortodoxas que deram origem à Grande Igreja de Roma reconhecida e tolerada oficialmente por Constantino em 313 d.C., e imposta como religião única de todo o Império Romano, com proibição total do paganismo (e mesmo do cristianismo gnóstico e/ou esotérico) pelo imperador Teodósio em 391 d.C. No caso da tradição cristã, a Iniciação sacerdotal manteve-se nas comunidades de tipo esotérico (gnósticas, etc.) enquanto duraram, apesar das implacáveis perseguições que sofreram por parte da Igreja romana conforme se pode coligir de relatos históricos coevos e dos textos gnósticos que chegaram até nós, bem como da interpretação crítica que deles se pode fazer (Hoeller 2002, 81-92). Com a exoterização progressiva da linha eclesiástico-ortodoxa do cristianismo, a Iniciação sacerdotal desapareceu para dar lugar à Ordenação sacerdotal, e o sacerdócio deixou de ser mysterium para se tornar sacramentum, validamente conferido apenas aos baptizados do sexo masculino de acordo com o direito canónico da Igreja católica romana («Sacram ordinationem valide recipit solus vir baptizatus», cânone 1024 do Codex iuris canonici [«Código do Direito Canónico»], versão reformada do Codex de 1917, e promulgada em 25 de Janeiro de 1983 por João Paulo II).
Concentremo-nos, agora, na Iniciação cainita — originadora das Escolas de Mistérios e respectivas Iniciações ocultas —, uma vez que a Iniciação sethiana, própria da classe devocional e sacerdotal, não dá origem a Escolas de Mistérios devido à sua vertente exclusivamente mística. De acordo com o esoterista Oswald Wirth (1860-1943), o ocultista desenvolve a sua individualidade através da exaltação do Enxofre e a sua Iniciação é masculina ou dórica (Marte), ao passo que o místico conforma a sua personalidade aos princípios da Iniciação feminina ou jónica (Mercúrio segundo Wirth, Lua segundo Heindel), sendo que o ideal máximo a alcançar consiste na superior harmonização de ambos os princípios, a que Wirth chama o Teurgo e as correntes Rosacruzes o Adepto, em que se concilia a elevada actividade intelectual do ocultista com a elevada passividade cordial do místico (Wirth 1975, cap. VI) (Para se complementarem mais detalhes sobre a diferença entre Iniciação oculta e Iniciação mística, ver: Macedo 2006, 37; Macedo 20002, 268-276).
Porquê a necessidade de duas Ordens contrapolares, uma masculina e outra feminina, a ROC (Real Ordem dos Construtores) e a ROT (Real Ordem das Tecedeiras) para a transmissão iniciática de determinados saberes — neste caso, concretamente, os saberes e os segredos dos ofícios reais atinentes à protecção mágica, astrológica, alquímico-hermética e cabalística do corpo-templo do ser humano?
Para além de outras artes e ofícios respeitantes a outras tantas formas de protecção, como a medicina, a filosofia ou a arte de bem navegar, sempre se prestou, desde o início, uma especial atenção aos ofícios que protegem directamente o corpo-templo do ser humano das «trevas exteriores», protecção essa realizada sob duas formas complementares, a construção protectiva com minerais e a tessitura protectiva com tecidos orgânicos.
Vejamos a origem desta dupla tradição esotérica.
3. A Ordem de Melquisedec e as formas iniciáticas originárias |
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12. Das tradições mesopotâmica e judaica à modernidade ocidental |
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